Álvaro Pereira Júnior

O verdadeiro reaça

11/04/2015 02h00

Como assim, sua bicicleta não foi construída com bambu de uma chácara holística e nem é um modelo "vintage" dos anos 1940? Reaça!

Você não toma só leite de soja feito com grãos orgânicos cultivados localmente? Acha chata e pretensiosa a ceninha da MPB paulistana de Baixo Augusta e Sescs? Reaça!

Nem sob a mira de um fuzil compraria um disco de Tiê, Criolo, Karina Buhr? Reaça!

Imagina que São Paulo deveria ter outras prioridades, que não ciclovias em bairro descolados? Acha que nem todas as manifestações culturais da periferia são necessariamente maravilhosas, só por serem da periferia? Reaça!

De tantas palavras que tiveram seu uso avacalhado neste século ("esquerda" e "direita" são outras duas que me ocorrem), "reaça" ocupa o primeiro lugar. O carimbo de "reaça"–"reacionário"– é cravado na testa de qualquer coitado que não se encaixe em uma cartilha bastante estreita de comportamentos e opções partidário-culturais.

Diante de um quadro tão distorcido, nada como conhecer um reaça da pesada: o general Sylvio Frota (1910-96), o mais duro entre os linhas-duras do golpe militar de 1964.

Ministro do Exército do governo Geisel, foi demitido em 12 de outubro de 1977, sob suspeita de tramar contra o presidente.

Frota conta sua versão em "Ideais Traídos" (ed. Zahar, 664 págs. R$ 29,90), autobiografia lançada em 2006 e que conheci, por acaso, nos últimos dias. Leitura fascinante.

Frota, o reaça, não tem dúvidas: no ministério de Geisel, só ele próprio representava os ideais da Revolução. O presidente e o chefe da Casa Civil, o general Golbery do Couto e Silva, eram "homens de esquerda".

É isso mesmo: Geisel e Golbery "de esquerda".

Na ideologia de Frota, acima de tudo está o Exército. Para ele, a criação da Escola Militar do Realengo, em 1913, no Rio, atraiu jovens de diversos segmentos sociais.

Assim, o Exército passou a ser "a mais lídima representação do nosso povo". O que equivale a dizer que o Exército é o país (ou melhor, a "pátria", no falar gongórico de Frota).

Apesar do ultradireitismo do general, "Ideais Traídos" desfaz, a meu ver, a ideia de ele ser um milico bronco e inculto.

Cita em francês e latim, lembra fatos históricos com desenvoltura, até se permite brincadeiras.

Em uma das inúmeras vezes em que ataca o maquiavelismo de Golbery, descreve-o como um "seguidor bem-sucedido das normas do famoso funcionário da Chancelaria de Florença". Sobre um desafeto, coronel Leitão, ressalta que "era conhecido pelo desagradável e sugestivo apelido de Caveirinha".

Bem menos leves, senão perturbadoras, são as referências do militar às torturas. Ele as nega.

Em sua gestão no Ministério do Exército, aconteceram três "suicídios" de presos políticos no DOI-Codi de São Paulo: o tenente da PM José Ferreira de Almeida, o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho.

Em nenhum momento Frota admite que suas mortes tenham sido consequências de tortura.

Cogita, no máximo, que, depois de interrogatórios muito intensos, os presos, uma vez sozinhos na cela, psicologicamente destroçados e sem vigilância, preferiram se matar.

Ao descrever o dia em que o general foi demitido, o livro ganha tom de thriller. Ele alega ter sido pego de surpresa. Defenestrado por Geisel, volta ao ministério e convoca uma reunião de emergência do Alto Comando. Mas só um general comparece.

Os outros, que chegam de vários pontos do Brasil, são apanhados no aeroporto por carros da Presidência e levados ao Planalto. Depois de dez horas de tensão, Frota finalmente entrega o cargo.

Ele rejeita enfaticamente ter tentado um golpe e nega ter se movido para suceder Geisel (que já tinha escolhido João Figueiredo).

Credita tudo às maquinações de Golbery e do próprio Figueiredo, o "grupelho do Planalto". Insinua que os maiores defensores de sua candidatura, militares e políticos, faziam parte, na verdade, de uma trama para indispô-lo com Geisel e provocar sua demissão.

Em "Ideais Traídos", é preciso paciência com o vocabulário rococó (elogio é "encômio", rascunhar é "bosquejar", entristecer é "contristar" etc). E também estômago de aço nos trechos em que o autor nega os maus tratos aos presos políticos.

Mas a leitura pode ser didática. Quem chegar ao fim das 664 páginas vai entender o que é ser um reaça de verdade.

E que isso não tem nada a ver com bambu, soja, MPB ou ciclovia.

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