Álvaro Pereira Júnior

Até tu, Trudeau?

25/04/2015 02h00

Lições de moral para cima de defuntos, que tal? Já faz três meses que estão mortos, sete palmos sob a terra, mas ainda assim precisam escutar umas boas, que é para ver se tomam tento. Para deixarem de ser abusados na próxima encarnação.

A bronca principal contra os infelizes: "Morreram? Ninguém mandou, deram mole, e não são vítimas: são culpados pelas próprias mortes".

Não transcrevo literalmente, mas sem dúvida era essa a mensagem do cartunista americano Garry Trudeau ao espinafrar as vítimas do atentado que matou 12 pessoas na sede do jornal "Charlie Hebdo", no dia 7 de janeiro, em Paris. Eu escrevi e você leu certo: não foram os terroristas assassinos que ele criticou. Pôs a culpa nas vítimas.

Garry Trudeau, 66, expôs esse raciocínio há poucos dias, ao receber um prêmio pelo conjunto da obra na Universidade de Long Island (EUA). Para o artista, famoso mundialmente pela tirinha "Doonesbury", a responsabilidade pelo ato terrível foi do próprio jornal.

Ao satirizar continuamente o islamismo, os humoristas franceses, na visão dele, praticavam "o discurso do ódio" e não entendiam que "a liberdade sempre deve ser discutida num contexto de responsabilidade".

Na opinião de Trudeau, só conseguem defender o "Charlie" os "absolutistas da liberdade de expressão".

Como procuro pensar que sou um "absolutista da liberdade de expressão", foi com inquietação e muito desconforto que percorri o texto lido por ele na cerimônia.

Com seu pensamento esquemático, sentencia: "Ridicularizar os não-privilegiados quase nunca tem graça –é apenas cruel".

Há muito de boa intenção em uma declaração como essa. O problema é que, para Trudeau, entre esses intocáveis "não-privilegiados" estão os extremistas que, armados até os dentes, entraram atirando na redação do "Charlie". Já as vítimas desses facínoras representam "a autoridade" e "os poderosos".

Até onde vi, sua fala passou em branco no Brasil. Mas, nos Estados Unidos, tem provocado muita discussão.

Um ataque bem calibrado vem do comentarista David Frum, na revista "The Atlantic". Diz ele que, diante de um conflito, "Trudeau nos apresenta uma teoria moral clara e executável: 1- Identifique o portador de privilégios; 2- Responsabilize o portador de privilégios".

Para aproximar um pouco do Brasil essa "teoria moral" professada por Garry Trudeau, é só lermos os blogueiros e colunistas ultrapoliticamente corretos dos quais não há falta por aqui. Para essa tropa, as minorias são sempre vítimas.

Há um alinhamento automático ao lado dos "mais fracos". Mas será tão claro assim definir quem é o "mais fraco"?

Um exemplo: as transmissões da Mídia Ninja nas manifestações de rua de 2013. Os vídeos tiveram, merecidamente, repercussão mundial. Porque entraram onde a TV tradicional não conseguia chegar, usaram com agilidade as novas tecnologias e mostraram cruamente o despreparo e a truculência da polícia.

Mas imagine o seguinte: que, no meio de uma filmagem, o repórter ninja, de posse de seu iPhone 5 (o mais moderno na época), flagrasse um caso oposto.

Um bando de black blocs espancando um policial. Ou então um militante portando rojões, ou furtando uma carteira. Situações improváveis, é verdade, mas não impossíveis.

Será que os ninjas teriam botado isso no ar? Arrisco dizer que não. Ou, se botassem, dariam um jeito, como Garry Trudeau, de culpar a vítima.

Porque eles estavam lá movidos pela mesma "teoria moral": defender os "pequenos" contra os "poderosos". Soa bonito, mas, infelizmente, a realidade é bem mais complexa e nuançada do que isso.

No jornal "The New York Times" de domingo passado, o colunista Ross Douthat, também comentando o discurso de Garry Trudeau, lembrou a atual onda de estupros em cidades industriais da Inglaterra, em que as as vítimas são mulheres brancas e os estupradores, membros de gangues de paquistaneses.

Segundo o esqueminha de Trudeau, quem seria, nesse caso, a "autoridade" e "os pequenos"? O fato de as mulheres brancas, pelo menos em tese, estarem acima dos criminosos na pirâmide social, faz com que elas sejam menos vítimas?

E o fato de os estupradores viverem em comunidades de imigrantes pobres os torna menos culpados?

O polêmico discurso de Garry Trudeau é muito bem escrito, embora sem a menor dose de humor. Pode ser lido (em inglês) aqui. Resume, a meu ver, a visão dominante na esquerda americana, que tem ecos por aqui: maniqueísta, esquemática, piegas.

-

Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

-