Álvaro Pereira Júnior

O balcão da meia-noite

09/05/2015 02h40

Tudo pode em Shinjuku, o bairro onde nada consegue ser extremo ou estranho demais. É vizinhança central, a mais louca da mais mais febril das metrópoles: Tóquio.

Em Shinjuku, o neon e os telões gigantes, o aço e o vidro dos arranha-céus, convivem em desarmonia improvável com vielas escuras, becos que se ligam a outros becos, casebres de madeira, portinhas de restaurantes sem placa e bares que só quem é da noite conhece, e onde só os assíduos ousam entrar.

Acontece de tudo na madrugada –a vida dos residentes se mistura à de quem só quer se divertir. A velhinha passa com a sacola de compras do mercado 24 horas. O mafioso confere o movimento em sua área. Um menino compra bolinhos triangulares de arroz na loja de conveniência. As "hostesses" atraem para seus clubes noturnos os "salarymen" já bêbados de cair, tomando todas desde que saíram do trabalho, muitas horas atrás.

Neste ambiente de tolerância mil, fica o balcão da madrugada. É o restaurante do Mestre. Um homem sem nome, todos os chamam assim: Mestre. É o dono do lugar, e lá trabalha sozinho. Limpa, atende, cozinha, conversa (não muito).

O balcão da madrugada abre à meia-noite e fecha às sete da manhã. Em Shinjuku, onde o anormal é regra, um horário comum. "Meu dia começa quando o dos outros termina", resume Mestre. Homem de meia-idade, magro, religioso.

Uma cicatriz vertical na face esquerda –nasce na testa, passa pela pálpebra superior, para no olho, continua pela pálpebra inferior e vai até o meio da bochecha– lhe confere um ar levemente ameaçador.

Como é tão comum no Japão, o menu traz um único prato: neste caso, tonjiru, um cozido de porco e legumes com missô (pasta de soja). Mas este botequim tem algo a mais –se pedirem qualquer clássico da cozinha caseira, e o Mestre tiver os ingredientes, ele faz. Você só precisa ser cliente regular. Ou pelo menos que, em um golpe de sorte, ele vá com a sua cara já de primeira.

Outra marca japonesa: o Mestre não quer divulgação. O balcão tem só dez lugares e a cozinha é pequena. Não daria conta de um movimento maior. Ele autoriza uma blogueira a tirar fotos da comida, desde que ela não revele onde está. Resmunga quando entra um crítico de gastronomia ("a espécie que eu mais detesto"). Prefere que as coisas fiquem como estão.

O balcão da meia-noite reflete seu entorno –a fauna dos assíduos é Shinjuku em concentração máxima. Seres transgêneros dos mais variados graus. Moças em busca de aventuras e moços idem. Mulheres da noite de diferentes gradações –as que cobram só para conversar, as que se deixam tocar, as que transam.

Artistas frustrados, artistas decadentes, artistas iniciantes. Um místico que se senta sempre num canto e mal fala. O viciado em apostas. O aspirante a boxeador. Um astro pornô (nome artístico: "Erecto Ohki").

As três amigas solteiras que só falam em casamento e pedem toda noite "ochazuke" (arroz com chá e mais algum complemento, como ovas de bacalhau, peixe seco, ou conserva de ameixa).

Ninguém bota banca. Mesmo o crítico esnobe, um dândi de echarpe e paletó vermelho, vem só para comer um prato simples: arroz com manteiga e, por cima, umas poucas gotas de molho de soja (porque a manteiga já tem sal suficiente). Tranquiliza os outros frequentadores: "Não vou escrever sobre este lugar. Não quero que ninguém descubra."

O balcão da meia-noite é cenário de uma série japonesa de TV, "Shinya Shokudo" ("restaurante da madrugada"). Começou em 2009, teve três temporadas e deu origem a um longa-metragem. Tudo inédito no Brasil. Os capítulos de TV estão disponíveis, com legendas em inglês e legalmente, em sites como YouTube e Dailymotion (mais organizados neste último).

Cada episódio tem pouco menos de meia hora. Filmadas com esmero, as imagens das comidas são estonteantes. Mas não espere grandes "insights" de roteiro nem narrativas inovadoras.

Algumas soluções chegam a ser infantis (coincidências imensas que fazem cruzar os destinos dos personagens; tragédias gratuitas; dramalhões fora de medida).

O forte de "Shinya Shokudo" está nos frequentadores do balcão do Mestre. As tristes figuras, os perdedores solitários, os rejeitados. São de ficção, mas parecem tão reais.

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