Álvaro Pereira Júnior

Contra o vinil e o celuloide

18/07/2015 02h00

Filmes em celuloide, discos de vinil –que época de ouro, que saudade! Tudo bem sujo, bem riscado, fazendo um barulho infernal.

Quanto menos desse para enxergar, quanto pior o som, mais gostoso. Mundo bom era o mundo pré-digital. De tecnologias "quentes", sem a frieza dos zeros e uns, do código binário que hoje controla nossas vidas.

Esquecendo um pouco as artes, havia também a vida antes dos antibióticos, essas substâncias agressivas que causam tanto dano.

Aquela sim era uma era maravilhosa. Morria-se de doenças curáveis, e, graças a isso, a evolução cumpria seu curso natural. E as vacinas, então? Só vieram para prejudicar –dizem até que provocam autismo.

Ressonância magnética? Um método do mal. Perturba as propriedades físicas do núcleo atômico, e a natureza é algo sagrado, em que nunca se deve intervir.

Cirurgias cada vez menos invasivas, conhecimentos de genética que se aprofundam... Que tempos terríveis esses em que vivemos.

Sempre é bom avisar: os parágrafos acima contêm ironia. Não acredito em nada do que dizem.

Esse passadismo idealizado é conversa para hipster dormir. Só tem saudade desses dias quem não viveu neles. O cineasta William Friedkin, 79, estava lá. E não quer saber de olhar para trás.

Em entrevista ao site especializado em cinema "The Dissolve" (que infelizmente parou de ser atualizado neste mês, mas segue com os arquivos no ar), ele abraça a tecnologia digital para cinema e música.

E não entende como alguém pode defender os discos de vinil e o celuloide de 35 mm.

Friedkin dirigiu, em sequência, "Operação França" (Oscar de melhor filme em 1972, batendo "Laranja Mecânica", de Stanley Kubrick) e "O Exorcista" (1973). Se não tivesse feito mais nada, já teria escrito com honras seu nome entre os grandes.

Mas, em 1977, foi em frente e filmou seu projeto mais ambicioso, porém pouco conhecido: o longa "O Comboio do Medo".

O filme foi para Friedkin o que "Fitzcarraldo" representou para Werner Herzog, e "Apocalypse Now" para Francis Ford Coppola. Uma empreitada insana, milionária, cheia de dramas pessoais e desistências.

Na história, dois caminhões precisam levar toneladas de explosivos, selva adentro, por 300 km. As filmagens foram na América Central. Quase ninguém viu o resultado. Foi um fracasso de público.

Mas "Comboio do Medo" sobreviveu no circuito de reprises. E, desde 2014, circula, com a chancela de Friedkin, uma versão restaurada à perfeição, lançada também em Blu-ray.

O diretor explica para "The Dissolve": "É tudo digital. Ninguém mais vai exibir esse filme em 35 mm. As cópias estão sujas, riscadas, até partidas. 'Comboio do Medo' agora viverá no mundo digital".

Prossegue, fazendo comparações entre o cinema e a música: "Para mim [falar do celuloide com nostalgia, como faz o diretor Christopher Nolan], é como comparar os velhos discos de 78 rpm com os CDs. Quando você ouve um CD, é o som puro, do jeito que foi gravado. É uma gravação, mas muito boa. Os velhos discos de 78 rotações, e mesmo os de 33 e de 45, sempre ficavam riscados. Com o tempo, iam gastando. Mas o digital não gasta".

E finaliza: "Quem é que vai ter saudade de uma cópia suja e riscada? Esses defeitos não eram inevitáveis. Eram uma falha no processo".

A ressurreição do vinil em certos círculos modernos só se sustenta pelo viés do fetiche. Porque o disco é realmente bonito (e se presta a muitas intervenções, como ganhar cor e transparência). E porque as artes das capas e encartes ficam muito mais fáceis de ver e manusear.

Mas não há argumento técnico pró-vinil. O som é pior, distorcido, tem estática, o disco para no meio e você tem de ir lá mudar o lado.

Sem falar que as prensagens brasileiras sempre foram horrorosas, sobre um plástico de péssima qualidade, tão fino e flexível que era difícil até de quebrar (e o que não falta neste país são discos que merecem ser quebrados).

Claro, existem os audiófilos ultra-sofisticados, que ouvem vinil de alta gramatura, em equipamentos profissionais conectados por cabos de ouro. Mas esses são exceção, trafegam em outra órbita de exigência e sensibilidade.

Amar o vinil comum como febre "vintage" é tão ridículo como rejeitar os avanços da ciência e da medicina, ter saudade de um tempo que nunca existiu.

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