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    André Singer

    Ostentação

    16/02/2013 03h30

    Alertado por Danilo Cymrot, pesquisador do funk paulistano, sobre a popularidade de um novo gênero, fui assistir no YouTube ao média-metragem "Funk de Ostentação", que estreou na internet no fim de 2012. O filme retrata, desde o título e com nitidez, fenômeno que parece empolgar os jovens da periferia de São Paulo, estendendo-se já para outros pontos do Brasil.

    Trata-se, em resumo, de um canto falado --para ouvidos distantes, lembra o do rap, mas que, à diferença desse, ao menos na versão de Mano Brown, em lugar de fazer denúncia do quadro social, exalta o poder de consumo que chegou às camadas de menor renda nos últimos anos. Cobertos por correntes de ouro, óculos escuros e tênis sofisticados, os MCs entoam versos pontuados por marcas famosas como Nike, Armani etc.

    Os clipes das canções, disponíveis na internet, mostram os cantores, rodeados por mulheres em roupas sumárias e posições insinuantes, a ostentar símbolos de luxo. Carros e motos de grife, garrafas de uísque importado e notas de dinheiro ilustram em imagens o que as letras dizem sem rodeios. O sentido geral seria traduzido por algo como: "Isso é o bom da vida e nós também podemos tê-lo". "Yes, we can."

    Sem entrar em aspectos estéticos, para cuja análise eu não estaria capacitado, dois elementos externos saltam à vista. O primeiro é a autenticidade da manifestação. Tal como no caso do rap, são vozes da comunidade falando para a própria comunidade. Pertencer a um circuito paralelo ao da grande indústria cultural, nascido de baixo para cima, organizado por bailes massivos e divulgação na rede de computadores, é motivo de visível orgulho dos funqueiros mostrados na película.

    Por outro lado, os valores expressos são justamente os que emanam do mundo da publicidade, que alimentam e são alimentados pela indústria cultural "adversária".

    Embora se deva ter muito cuidado ao criticar as opções ostentatórias --afinal, se a velha classe média o faz, por que o novo proletariado não poderia fazê-lo?--, é mister observar que o endeusamento de rótulos comerciais representa uma extraordinária vitória ideológica do capitalismo.

    Fundas contradições. Ao simbolizar o desejo imperioso e tenso de ter acesso aos bens que o mercado coloca nas vitrines, os artistas populares mostram a situação da luta de classes. Ao transformar a posse deles em razão de viver, expressam a ilusão de felicidade que a mercadoria traz consigo.

    PS - Em relação à coluna anterior, recebo de Maíra Saruê Machado, do Instituto Datapopular, a informação de que, segundo o Ipea, em 2009, das empregadas domésticas mensalistas, apenas 2,7% dormiam no domicílio em que trabalhavam. Bom sinal.

    andré singer

    É cientista político e professor da USP, onde se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.
    Escreve aos sábados.

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