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    André Singer

    Brasil?

    10/05/2014 02h00

    O que está acontecendo no Brasil? Cabeças cortadas em presídios, mulheres arrastadas até a morte, linchamentos malucos que viram parte do cotidiano. É certo que o país sempre foi muito violento por baixo da capa cordial, terna e alegre –verdadeira, mas parcial–, usada para construir uma ideologia adequada aos trópicos. Só que agora a brutalidade parece exacerbada.

    O que torna estranho o aumento do brutalismo, como o denominou o jornalista Janio de Freitas em coluna recente, é que houve, na última década, uma evidente, ainda que moderada, melhoria das condições sociais. As famílias mais pobres passaram a receber um auxílio que, embora pequeno, aliviou a miséria e abriu janelas de esperança para os seus filhos. Os jovens tiveram acesso a empregos com carteira assinada, ainda que de baixa remuneração e em condições precárias.

    Os salários subiram, a começar do mínimo, que teve uma valorização da ordem de 70%. Mesmo depois de três anos de baixo crescimento do PIB, as categorias organizadas continuam a conseguir aumentos reais. Nos primeiro trimestre de 2014, de 140 convenções coletivas realizadas, 97% registraram concessão de ganhos acima da inflação (ver dados em bit.ly/agsind). São ganhos pequenos, com apenas 33% desses dissídios representando elevação real maior do que 2%, mas ganhos, enfim.

    Pode-se argumentar que tais avanços significam pouco em face do tamanho da pobreza e da desigualdade brasileiras, o que não deixa, também, de ser verdade. Porém deve-se considerar que tendo conseguido mantê-los ao longo de toda uma década, os efeitos são cumulativos. A esta altura já existe toda uma geração formada em ambiente menos excludente.

    Por que, então, os traços de barbárie social, nos quais é possível enxergar a perversidade específica que a escravidão legou, não vão sendo atenuados? É como se em um contexto de lento desafogo, as relações fossem tomadas por uma onda barbarizante, quando se esperava um progresso civilizatório, mesmo que incremental.

    Com sinceridade, não sei responder à pergunta. Percebo que, no fundo, ela sequer está bem formulada, pois o que estou chamando aqui de brutalismo deve encobrir fenômenos muito diferentes entre si.

    Estou convicto de apenas uma coisa: é preciso politizar o problema. Os candidatos e os partidos precisam por a questão da violência em suas agendas. O Estado deve desenhar novas políticas públicas a respeito. As instituições e organizações da sociedade que estiverem do lado da civilização precisam refletir a atuar sobre o assunto.

    O pior que pode acontecer é deixarmos a brutalidade se naturalizar, enquanto cada um se esconde em casa, tentando fingir que o mundo lá fora não existe.

    avsinger@usp.br

    andré singer

    É cientista político e professor da USP, onde se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.
    Escreve aos sábados.

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