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    André Singer

    Beijando a cruz, parte 2

    29/11/2014 02h00

    Em artigo publicado no mês de maio de 2003, o filósofo Paulo Arantes afirmava que o primeiro governo Lula havia optado por beijar a cruz, isto é, "vender confiança aos mercados e reduzir os custos da incerteza, que podem ser fatais num sistema desenhado para operar sob a ameaça permanente da morte súbita". Para tanto, via-se obrigado a dar repetidas demonstrações de conversão à ortodoxia neoliberal.

    Agora o fenômeno se repete, e não como farsa. Dilma Rousseff, a heroína da resistência à ditadura de direita, a mãe do PAC, a condutora do ensaio desenvolvimentista de 2011-2012, nomeia ministro da Fazenda um liberal duro, da área do PSDB e hoje dirigente de grande banco. Na escolha de Sofia, escolheu o credo do capital financeiro, relegando aos arquivos universitários a linguagem de esquerda utilizada na eleição.

    Para além da revolta que grassa entre militantes sinceros da última campanha dilmista, é necessário compreender o significado profundo da opção feita. Um trecho do referido texto de Arantes ajuda a entender, ainda que pela negativa, aspecto importante da situação atual. Citando "alto dignitário" do governo Lula, Paulo considerava que a linha mercadista tinha vindo "para ficar, pois a crise internacional seria permanente".

    A realidade, porém, foi algo diferente. Em 2004, a economia mundial cresceu 5%, a maior taxa em décadas, iniciando um ciclo expansionista até 2008. As commodities, de que o Brasil é grande exportador, se valorizaram em 100%, o que não acontecia há vinte anos. Foi então que o lulismo deu o inesperado pulo do gato: utilizou a bonança para melhorar, por vários caminhos, a vida dos pobres, ativando o mercado interno por baixo.

    Em 2006, com a ida de Guido Mantega para o mais alto cargo da economia, aumentaram os investimentos públicos e se acelerou a valorização do salário mínimo. Depois, com a troca de guarda no Banco Central, em 2011, houve tentativa combinada de redução dos juros e desvalorização do real, com o fito de estimular a indústria. Em resumo, para surpresa de muitos, comendo o mingau pelas bordas, o lulismo trilhou caminhos considerados heréticos pela ideologia dominante.

    Agora, contudo, resolveu começar do zero, voltando a 2003. Teremos novo ciclo de juros altos, corte de gastos e contração, com possível desemprego e diminuição da renda dos trabalhadores. O gesto suscita, de imediato, duas perguntas. Será que desta vez a estranha conjuntura mundial voltará a soprar a favor e, em caso positivo, quando? Será que as classes beneficiadas pela evolução do lulismo terão paciência para o trabalho de Sísifo que ele parece propor à sociedade brasileira?

    andré singer

    É cientista político e professor da USP, onde se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.
    Escreve aos sábados.

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