• Colunistas

    Friday, 03-May-2024 20:38:31 -03
    André Singer

    Falso brilhante

    10/10/2015 02h00

    A operação cênica do Tribunal de Contas da União, encerrada minutos antes de começar o "Jornal Nacional", merece entrar para a história dos escândalos políticos-midiáticos. Um órgão de assessoria parlamentar que se passa por corte para, em dizeres altissonantes, condenar unanimemente, e em rede de TV, a presidente da República por "desgovernança fiscal". Pode ser que o impeachment não prospere nunca, mas do ponto de vista ideológico Dilma Rousseff foi impedida na noite de quarta (7).

    Os fundamentos objetivos da condenação, no entanto, passam batidos. Desculpe-me o leitor por obrigá-lo a assunto tão árido, porém não há outro modo de abordar o tema. Tomarei apenas um exemplo, referente às supostas "pedaladas fiscais", para indicar como as evidências são fracas.

    Vazado em linguagem cifrada, o voto do relator busca fixar a ideia de que em 2014 a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) teria sido burlada de maneira criminosa por meio das pedaladas. Como prova, menciona-se a páginas tantas que as contas relativas à Bolsa Família, ao Seguro Desemprego e ao Abono Salarial, gerenciadas pela Caixa Econômica Federal (CEF), teriam ficado negativas em 59% dos dias daquele ano.

    O TCU considera que, ao deixar no vermelho o saldo dos referidos pagamentos, a União estaria usando dinheiro emprestado da CEF, o que seria proibido pela LRF. Com efeito, produzida, entre outras coisas, para conter o uso dos bancos públicos, ela proíbe que o Estado receba crédito de casa bancária por ele controlada.

    Ocorre que a resposta do Advogado-Geral da União, neste particular, foi precisa. Na defesa oral apresentada perante os ministros, Luís Inácio Adams lembrou que, ao final de 2014, o Tesouro tinha a receber da CEF 141 milhões de reais. Onde já se viu tomador de empréstimo receber em lugar de pagar dívida contraída?

    A charada se resolve se pensarmos que não houve empréstimo algum. Os ministérios têm um contrato de serviço com a CEF, que administra as sobrecitadas contas. Nos dias em que ela fica negativa, produz-se um haver em favor do banco, quando positiva, em favor do Tesouro, procedendo-se a um ajuste entre uns e outros. No caso de 2014, quem devia era a Caixa e não a presidente. Onde o crime, então?

    A imprensa, se quiser prestar um serviço à democracia, tem a obrigação de destrinchar o que está contido nas milhares de páginas oficiais escritas sobre o caso. Diferentemente dos episódios de corrupção, tudo está à mostra e pode-se chegar a conclusões claras.

    Ao governo cabe promover ampla campanha de esclarecimento. Se não o fizer, deixará o principal argumento pró-impeachment tomar conta do público por mera repetição.

    andré singer

    É cientista político e professor da USP, onde se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.
    Escreve aos sábados.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024