Foi instrutivo assistir à longa leitura do relatório proferido pelo deputado Jovair Arantes (PTB-GO) na Comissão Especial do impeachment na quarta (6). Ainda que se discorde das conclusões do nobre deputado, o que é o meu caso, deve-se reconhecer que ali se expressava parte significativa da população e da cultura local. O estilo do parecer entranha-se na formação desta sociedade.
Centrado sobre complicados assuntos de natureza orçamentária, o texto dava aparência de respeitabilidade técnica ao que se sabe ser apenas um jogo pesado para derrubar a presidente da República. Como bem disse o editorial da Folha (3/4), "pedaladas fiscais são razão questionável numa cultura orçamentária ainda permissiva". Justamente por isso, a retórica contábil precisava ser reforçada.
Como a permissividade é traço característico da realidade nacional, a aspiração à ordem se constitui, também, por reação, em forte característica verde-amarela. Daí haver leis que "pegam" e outras que "não pegam". Como distinguir umas da outras? Como explicar a um estrangeiro que crimes graves podem passar impunes e, simultaneamente, uma pessoa ir presa por bobagem?
Será sobre o referido pano de fundo que vai se ferir nos próximos dias confronto congressual decisivo para o futuro do país. Nele, o maior trunfo dos que desejam tirar Dilma Rousseff, o lulismo e a esquerda de cena (se possível por décadas) está em colocá-los do lado da desordem. Se forem bem-sucedidos, arrastarão consigo o fundo conservador brasileiro e o impedimento virá.
Embora não tenha sido ressaltada por Arantes, a Operação Lava Jato, e mesmo o mensalão, terá cumprido papel chave na peleja. Ao longo de agora muitos anos foi-se construindo a versão, largamente difundida, de que o PT é partido fora da lei. Isto é, agremiação que atravessou a linha vermelha da criminalidade inaceitável (pois há os desvios permitidos, de acordo com código não escrito). Votar pelo impeachment na comissão e no plenário significa endossar essa versão dos fatos.
Infelizmente, lulismo e PT cometeram erros que permitiram a construção de tal narrativa, muito danosa às perspectivas de mudança social. Por outro lado, o uso das pedaladas como pretexto do impeachment, ainda que aplique verniz à ofensiva antipopular, revela a principal fragilidade do processo em curso: não se encontrou qualquer vínculo da mandatária com a corrupção.
Seja qual for o resultado, muitas lições vão emergir das sessões em curso no Congresso Nacional. Uma das poucas vantagens das crises é trazer a verdade à tona. O Brasil poderá se observar em detalhe no espelho que o legislativo oferece ao país. Goste-se ou não, a face real vai aparecer.
É cientista político e professor da USP, onde se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.
Escreve aos sábados.