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    Angela Alonso

    A tentação do dualismo

    28/08/2016 02h00

    Você –como todos os brasileiros– vem seguindo compulsoriamente duas novelas. A da Olimpíada acabou, a do impeachment está no último capítulo. Ambas já ganharam o pódio na memória nacional. São eventos indeléveis, dos quais falarão nossos pósteros e seus livros de escola.

    Na novela esportiva, o país se acercou do precipício por todos os lados e estava fadado a despencar dele, segundo profecias nacionais e importadas. Mas improviso e desporto são nossos elementos. Os agourentos da vez falharam: nada de atentado terrorista, arrastão ou incompetência que destoasse de antecessores como Moscou ou Atenas. O saldo é o da nação que se vira e, no frigir dos ovos, funciona mais ou menos –às vezes mais, às vezes menos– como as outras.

    Do alívio brotou o ufanismo. No livro que popularizou o neologismo –"Por que me Ufano de meu País" (1900)– Afonso Celso se referia ao povo e à natureza como bases para o orgulho nacional. Mais de um século depois, o princípio aí está, abrindo e encerrando a Olimpíada. O espetáculo atualizou o mito das três raças, congraçamento de índios, africanos e europeus num povo miscigenado. Jorge Ben Jor cantou o complemento: a beleza tropical como dádiva divina. Natureza e cultura deram a suma da brasilidade. Exuberantes e criativos, resilientes e alegres, os brasileiros da abertura olímpica corporificaram o povo cordial.

    Esse Brasil sem hierarquias nem conflitos, irmanado sob a bandeira verde e amarela, ressoou fundo, vide a emoção do público e a reação da mídia.

    Isso quanto ao conteúdo. Mas parte do orgulho com o espetáculo emanou de sua forma. Aí entrou com tudo o país moderno. Gente cosmopolita e ás da tecnologia, exibida na precisão hollywoodiana de concepção, andamento e trilha sonora –por si só um personagem. Artistas e equipe técnica esbanjaram o profissionalismo do Brasil que dá certo. A abertura apelou à tradição –povo, natureza, arte–, mas a colocou sob o controle severo do princípio da eficiência.

    A novela política se assemelha à olímpica no recurso aos signos da nacionalidade. O enredo, porém, combina proporções diferentes de tradicional e moderno. Os argumentos pró-impeachment talvez soem mais sóbrios no Senado, mas tendem a repetir, no cerne, os bradados na Câmara. Ali se apelou à tradição no que ela guarda de mais paroquial e mais arcaico. Votou-se em nome de Deus, da família heterossexual e da localidade. Ali se exibiram intolerâncias de todos os tipos –de orientação sexual, política, religiosa etc. Sem contar vitupérios machistas contra a presidente afastada –será instrutivo aquilatar a conduta dos parlamentares quando de sua presença no Senado.

    A votação no Parlamento trouxe à tona, pois, Brasil distinto do exibido na abertura olímpica. Nada de ecumenismo racial: maioria esmagadora de homens brancos. Nada de cosmopolitismo e alta cultura, antes amostras grátis de provincianismo. E nada de cordialidade. A política de destruição do adversário se materializou em adesivo, que certos deputados ostentaram na lapela, com um traço proibindo mão de quatro dedos. Veto que atinge, para além de Lula e o estrato de trabalhadores do qual é originário, todos os portadores de deficiência.

    O Brasil são dois? O da Olimpíada tem por musa a garota de Ipanema "globe-trotter", alta, loura e ambientalmente correta. O do impeachment achou seu defensor-mor na figura de Eduardo Cunha, personagem ausente na última cena, mas cérebro que urdiu todo o drama. Um Brasil regido pela eficiência, outro gerido pelo paroquialismo, o cordial versus o violento, o criativo contra o da mesmice, o do trabalho resistindo ao corrupto. É tentadora a tese do dualismo. Além de equacionar o problema, ela traz na garupa a solução: bastaria extirpar uma parte para dar viço à outra.

    A dificuldade é que os dois mundos se entrelaçam num só país. O noticiário informa profusamente que há denunciantes da corrupção que são corruptos e pacifistas que praticam a violência. Tudo se complica longe dos holofotes. Os brasileiros de carne e osso não se dividem entre a constelação de Eduardo Cunha e a de Gisele Bündchen. Em maioria, vivem no planeta de Rafaela Silva.

    O nó é que a parte moderna do Brasil, que brilhou na Olimpíada, não vive sem a tradicional, que domina a cena do impeachment. Pelo menos não viveu do Descobrimento até agora. Desafortunadamente, sintetizou Machado de Assis (em "Memórias Póstumas de Brás Cubas"): "Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor".

    angela alonso

    É professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve aos domingos, mensalmente.

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