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    Angela Alonso

    A república das Marcelas, o reino das princesas e o sonho das meninas

    23/10/2016 02h02

    Pedro Ladeira - 5.out.2016/Folhapress
    O presidente Michel Temer, acompanhado da primeira-dama Marcela Temer durante cerimônia de lançamento do programa Criança Feliz, no Palácio do Planalto
    O presidente Michel Temer, acompanhado da primeira-dama Marcela Temer durante cerimônia de lançamento do programa Criança Feliz, no Palácio do Planalto

    "Marcela amou-me durante 15 meses e 11 contos de réis, nada menos." Esta Marcela foi a paixão de juventude de Brás Cubas, o personagem-síntese do Brasil. Mas o nome também evoca outra Marcela, contemporânea e em tudo distinta da literária.

    A de Machado de Assis era mulher livre, dona de seu nariz. Perigosa. Tanto assim que o Cubas pai tratou de afastar o filho da moça. A Marcela de carne e osso carrega menos risco e nenhuma ambiguidade. Compartilha com a ficcional o enquadramento num certo ideal de mulher, regido pela beleza. Mas aí se esgota o paralelo.

    A primeira-dama reza por breviário mais simples e bem conhecido. Trafega em zona ultrassegura, nada precisa prover ou provar. Tem as contas pagas, as falas prontas, a vida decidida. Nem o nome do filho careceu escolher: no menino se reproduziu o senhor seu pai.

    Marcela não se exprime, comparece. No papel de compor a paisagem, talvez visasse o estilo Jackie Kennedy, da simplicidade elegante. Mas acabou em campo retrô, meio Barbie, meio Rapunzel, entre dois mundos, o da boneca, boa moradia para ex-miss dedicada ao consumo, e o reino do faz de conta, onde se encastela qual a mocinha do cabelão.

    A senhora Temer pertence a uma linhagem, a das primeiras-damas decorativas, afeitas ao serviço social –a caridade, a filantropia e outras formas de generosidade talhadas para camuflar a desigualdade.

    O que surpreende nela não é tanto a dedicação ao frívolo conjugada à inocência sobre o país –nisso, sua versão municipal, dona Bia Doria, já ocupa inconteste o pódio. O que espanta é que, sendo tão jovem, seja tão tradicional. E que tome para si, no perfeito equilíbrio de orgulho e timidez esperado das recatadas, o papel de submissa, de secundária. Espanta que mulher de sua geração jogue o jogo de gênero de modo tão apaziguado.

    Excluído o zumbido dos que protestam à sua porta contra o marido, nada parece perturbar seu prazer contido em habitar uma gaiola dourada. Obviamente não espanta a todos. Um bom naco do país festeja o retorno das coisas aos lugares de costume: os senhores no comando, as senhoras em casa –ou no shopping.

    Termos tido uma presidente inflou fantasia maior que a dos contos de fada, a da igualdade de gênero, que se desmancha nos resultados eleitorais. Em São Paulo, onde reinará dona Bia, elegeram-se 11 candidatas, 20% da vereança, embora as mulheres sejam 52% da população municipal.

    Dados que decerto pouco afligem a nova primeira-dama paulistana. Dela pouco sobrou a dizer. Ela disse tudo em entrevista à Folha. Da cidade nada sabe. Sua geografia ajunta o Minhocão à Etiópia e não separa a Vila Nova Conceição da Park Avenue. Mas, afinal, quem vai gerir é o senhor seu marido.

    A questão ultrapassa pessoas. O estilo das duas primeiras-damas exemplifica um modelo de comportamento feminino esperado. Recomendam às meninas se distanciarem dos assuntos públicos em troca de um reinado doméstico.

    Mais perigosa que sua xará ficcional, a Marcela de verdade encarna um ideal: o da princesa. É também o que orienta uma herdeira do reino Abravanel. Como não falta à moça capital para pôr devaneio em prática, tornou-se feliz proprietária de uma franquia da Escola de Princesas.

    Segundo seu site, a escola visa meninas de 4 a 15 anos e promete "resgatar a essência feminina que existe em seus corações". As páginas são cor-de-rosa, com uma coroa em destaque. Na primeira, mini-Marcelas loirinhas e sorridentes propagandeiam o que aprendem: etiqueta e moda, casa e família, e todos os maneirismos das antigas sociedades aristocráticas. Saberão entreter, decorar, vestir, andar, receber e pensar como princesas.

    E o que pensa uma princesa? O site : "O passo mais importante na vida de uma mulher é sem dúvida nenhuma o matrimônio. Nem mesmo a realização profissional supera as expectativas do sonho de um bom casamento. Enfim, a ideia do 'felizes para sempre' é o sonho de toda princesa".

    A educação para o casamento avança com candura, como avançam pelo país os profetas do reino de Deus e os arautos do Estado liberal. Aí se abre amplo mercado para a herdeira de Silvio Santos. Se seguir a trilha dos negócios paternos, sua franquia logo abastecerá o país com profusão de princesinhas, prontas a seguirem em júbilo os passos de Marcela.

    Neste universo, de circunferência cada vez mais dilatada, a primeira-dama não destoa, reina. O lema da escola é o seu: "Todo sonho de menina é tornar-se uma princesa". O sonho de toda menina devia ser se tornar o que quiser.

    A próxima presidente, se a tivermos, prestará grande serviço se extinguir o cargo das senhoras Temer e Doria. O país não precisa de primeiras-damas nem de princesinhas. Precisa de mulheres de nervo e cérebro. As princesas podem ir morar lá no reino ao qual pertencem, o do passado.

    angela alonso

    É professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve aos domingos, mensalmente.

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