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    Angela Alonso

    Barack, não me deixe com eles

    20/11/2016 02h00

    Clemens Bilan - 18.nov.2016/AFP
    Obama acena ao deixar Berlim em sua última viagem pela Europa
    Obama acena ao deixar Berlim em sua última viagem pela Europa

    "Barack, por favor, não me deixe com eles." "Joe, você vai embora quando eu for." "Certo, eu amo você." O diálogo compõe uma das várias historinhas bem-humoradas e já nostálgicas sobre as reações de presidente e vice ao fim de seus mandatos. E também testemunha a disseminação do encanto pessoal de Obama.

    Quem (além dos eleitores de Trump) não ama Obama? Noutra anedota, Biden comunica ao chefe que alugou uma casa para os dois seguirem vivendo juntos.

    Chegou ao fim a festa dessa dobradinha complementar, bem-humorada e interracial, que só perde em carisma para outra dupla, a do presidente com a primeira-dama. Aí temos o casamento em sua versão contemporânea, entre iguais. O par charmoso, inteligente, jovem e negro resume um ideal de civilidade.

    Provavelmente (porque o amor moderno nem sempre é para sempre), o casal Obama vai seguir junto, mas, como Joe Biden, boa parte do mundo terá de se separar da convivência cotidiana com Obama, depois de oito anos de feliz união. Fotos, vídeos, memes, gifs se multiplicam para atestar quão bacana é o presidente.

    Obama deitado com crianças no chão da Casa Branca, fazendo careta ao ajeitar a gravata, dançando de black-tie com Michelle. Desde a estreia na corrida eleitoral nº 1, virou pop. Mas, sobretudo, encarnou um projeto de modernidade, primeiro negro a ocupar o primeiro posto num país pós-escravista.

    Agora estamos de luto porque o fim de seu mandato semelha o remate de uma era. A confluência de "brexit", Trump e Temer sugere um desses alinhamentos possíveis apenas nos horóscopos. Mas, ao contrário do que se passa no zodíaco, mesmo os descrentes serão punidos com as consequências –políticas, econômicas, bélicas.

    Esse mapa astral vem sendo lido como onda reacionária, que alaga o mundo com eficácia vertiginosa. É surpresa e não é. Surpreende quem acredita na flecha do progresso, com sua direção utópica rumo a liberdade, igualdade e justiça. Mas espanta menos observadores da montanha-russa da história, com avanços e solavancos, o Estado de bem-estar social e a escravidão, seu Einstein e seu Hitler.

    Toda vez que há movimentos de mudança, aparecem contramovimentos de conservação. O "brexit" é a revolta do provinciano contra a globalização, Trump é a resposta dos "wasp" (white anglo-saxon protestant, protestantes brancos anglo-saxões) às políticas pró-minorias, e Temer, bem...

    Cabe, porém, cautela quanto à tese de que se assiste à emergência de um novo conservadorismo em escala global. Primeiro, porque cada país tem conservadores à moda da casa, e em cada uma há gradações e matizes, além de rara coerência existencial –há quem seja conservador em moral e avançado em política, e vice-versa.

    Segundo, porque o conservadorismo não nasceu ontem. Cresceu nos séculos 19 e 20 como reação a movimentos de modernização das formas de pensar, agir e sentir. Reagiu à secularização das instituições, à expansão dos direitos individuais e ao cosmopolitismo. Defesa do concreto contra o abstrato, do particular contra o universal. Resistência que consiste em reafirmar os pilares da sociedade tradicional: família, religião e nação. E em manter tudo como está, tanto em moral e costumes quanto na divisão de direitos e poderes.

    Esses princípios nunca saíram da cena nem estiveram restritos a uma pátria. Há momentos de prevalência progressista entre governos e opinião pública, mas os conservadores jamais sumiram do mapa. As religiões se multiplicaram no último século; a despeito do papo sobre globalização, o passaporte atesta a força do Estado-nacional, e o padrão mais popular de família ainda é o tradicional.

    Tais valores são vociferados todos os dias em rádio, televisão, jornais, na internet. Os fãs de Obama, que habitam o lado chique da rede, ignoravam talvez os fãs do Trump, mas eles vivem ali do lado. Basta lembrar ofensas de que Obama foi objeto ao longo de seus mandatos. Em 2015, um prefeito americano o chamou de macaco e acrescentou que Michelle tinha "cara de gorila". Um xingamento que nesta semana apenas se repetiu.

    Os conservadores não chegaram agora e tampouco vão submergir com algum novo tsunami progressista. Obama vai deixar saudade. Com certeza, para a parte dos cidadãos à qual pertenço. Mas vai tarde para outro pedaço do planeta.

    Num dos memes Biden-Obama, o vice vê pela janela a chegada do presidente eleito e sugere ao amigo: "Vamos todos nos esconder!". Tudo o que quem compartilha os valores de Obama e execra os de Trump não pode fazer agora é se esconder.

    angela alonso

    É professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve aos domingos, mensalmente.

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