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    Angela Alonso

    Incluir e excluir se complementam na construção de identidades nacionais

    22/10/2017 02h00

    O mundo observa a Catalunha. Haverá, afinal, outro Estado nacional no mapa?

    A pergunta está na ordem do dia e ecoa a que Ernest Renan usou como título de conferência na Sorbonne: o que é uma nação? Foi em 1882, quando o palestrante era figura de renome e o nacionalismo ascendia. Hoje, Estados-nações são a paisagem natural. Como se existissem desde sempre e para sempre. Mas não é bem assim.

    Renan se deteve no assunto quando a Europa se via obrigada a encarar o tema por causa de dois processos que a assolaram no século 19. Um foi a unificação de principados autônomos, originando estados novinhos em folha: a Alemanha e a Itália. Outro foram as independências de territórios europeus nas Américas. Os países resultantes dessas trilhas construíram identidades nacionais que os distinguissem daquilo de que se arrancavam.

    Por aqui, também a unificação territorial demorou do Dia do Fico até a Primeira República. O processo custou sangue (como na Confederação do Equador), suor e réis (quando compramos o Acre). Mas ganhou representação simbólica edulcorada em "Iracema": um Brasil meio índio, meio português, com africanos do lado de fora.

    Incluir e excluir se complementam na construção de identidades nacionais. Começa como ideal que agrega, depois se materializa em passaporte que deporta.

    Os ativistas do movimento "O Sul é o Meu País" evocam essa tradição ao proporem a conversão de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná em novo país. Aproveitam a celeuma catalã para aparecer, mas não são modistas. Estão aí desde os anos 90 e se filiam tanto à linhagem de revoltas rio-grandenses como à tentativa paulista de descarrilar os demais vagões da locomotiva em 1932.

    Os neoseparatistas sulistas carecem, porém, das condições em que ideias nacionalistas viram movimentos políticos. O fermento são situações de duradoura dominação, opressão, exclusão ou extermínio de um grupo social por outro em dado território. Movimentos separatistas nascem da contestação à desigualdade, injustiça ou intolerância e se amparam na ideia de autodeterminação dos povos.

    Mas o que é "povo", ou, como fraseia Renan, "nação"? Como inferioridades étnicas, linguísticas, religiosas e regionais são brandidas para subjugar, também os subjugados se defendem invertendo o sinal.

    Assim nascem os discursos nacionalistas que enaltecem traços compartilhados por um grupo: geografia, língua, religião, tradição. Com exceção da ideia de raça, desacreditada no pós-nazismo, os nacionalismos de hoje ressoam os do tempo de Renan no apelo à comunhão entre os homogêneos.

    Na defesa da comunidade, o nacionalismo conclama ao insulamento. Abandona o discurso universalista do Iluminismo. Sua retórica define a alfândega do legitimamente nacional. Em vez dos direitos para todos, defendem os exclusivos para uma comunidade particular. Em vez da convivência entre diferentes, fronteiras. Nacionalistas são antiuniversalistas.

    Não à toa, políticos à direita na Áustria, nos Estados Unidos, na Holanda, na França, no Brasil, usam a linguagem do nacionalismo, exibindo ostensivamente símbolos do país.

    Claro, Bolsonaro não é Trump, nem "O Sul é meu País" se iguala aos separatistas catalães. A Catalunha pode argumentar que Madri, desde antes de Franco, tenta submetê-la. Já nossos sulistas têm menos a reclamar de Temer —ou não mais que os 95% dos brasileiros que não aprovam seu governo. Ainda que disparatados, os casos aludem ao mesmo fenômeno: a expansão da retórica nacionalista e de uma política por ela orientada.

    As nações não são feitas só de ideais. Benedict Anderson, em "Comunidades Imaginadas" (Companhia das Letras), aponta que essas criações culturais dependem de empreendimentos econômicos (o "capitalismo de imprensa") para se disseminar. Charles Tilly, em "Coerção, Capital e Estados Europeus" (Edusp), adiciona a indústria bélica, mostrando como as guerras foram o grande berçário dos Estados nacionais.

    Pode parecer fácil separar bons e maus nacionalismos, conforme ideais de esquerda ou direita. Contudo, todos os até aqui efetivados criaram exclusões.

    Quem desconfia de sociólogos pode conferir nos romancistas. Em "Meio Sol Amarelo" (Companhia das Letras), Chimamanda Ngozi Adichie narra o modo como interesses e crenças, idealismo e violência se combinaram no nascimento da paupérrima Biafra. E não foi assim só lá. Por onde passou, o nacionalismo deu provas exuberantes de suas parcas virtudes. Nunca é limpa a cozinha na qual se fazem as nações.

    angela alonso

    É professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve aos domingos, mensalmente.

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