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    Antonio Delfim Netto

    Ignorância

    07/05/2014 02h00

    Depois que o núcleo central do pensamento econômico (o famoso "mainstream") foi incapaz de antecipar e prevenir a crise de 2007/09, analistas que eram intimidados pelo que supunham ser uma "ciência", libertaram-se.

    Sem nenhum constrangimento, apresentam agora diagnósticos e sugestões de políticas sociais e econômicas que, "sem lágrimas", produziriam a "salvação". A maior parte deles declara-se portador de outras "ciências", o "marxismo" ou o "keynesianismo", ou uma combinação desapercebida das duas, que horrorizaria seus supostos mestres, os pobres Marx e Keynes, dois gênios extremamente maltratados por seus asseclas.

    É claro que, se partirmos de hipóteses tão arbitrárias quanto autoritárias, podemos determinar aos indivíduos como queremos que eles respondam aos incentivos (positivos e negativos); temos a absoluta liberdade de modificar as instituições para atender aos nossos desejos; o futuro repetirá o passado; podemos distribuir o que ainda não foi produzido; no processo produtivo a soma das partes pode ser maior do que o todo; as restrições da contabilidade nacional são invenções ideológicas do neoliberalismo e podemos concluir que o conhecimento do "mainstream" está morto e tudo é permitido.

    Mas podemos concluir, com a mesma lógica, que se urubu fosse avião a força aérea brasileira seria a maior do mundo! Como dizia o Vilfredo Pareto, um grande economista-sociólogo do século passado, "me dê as hipóteses que eu quero e demonstrarei o que você quer".

    A verdade é que o mundo e o homem "estão dados" e que não se trata apenas de estudá-los. Trata-se de mudá-los para acelerar a construção de uma sociedade cada vez mais civilizada, onde cada um possa encontrar livremente a sua humanidade. É isso que se vem tentando fazer pelo jogo entre a urna (o sufrágio universal) e o mercado (liberdade individual e respeito ao sistema de preços relativos), duas instituições que foram descobertas por tentativa e erro, com enormes sacrifícios ao longo de séculos, por um processo de seleção histórica (às vezes violenta) semelhante à evolução biológica. Cada vez que se tentou a "via rápida" para a felicidade substituindo a urna ou o mercado (ou as duas) ficamos mais longe do objetivo.

    Abandonar o conhecimento que os economistas e os historiadores acumularam nos últimos 2.500 anos para substituí-lo pelo voluntarismo arrogante e ignorante como às vezes se propõe, apenas tornará mais longo e mais penoso o inexorável caminho do homem para encontrar a sua humanidade, afastando-o das visões de Marx e de Keynes que, de forma diferente, sugeriram dois objetivos não plenamente conciliáveis até agora: igualdade e liberdade.

    antonio delfim netto

    Ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici), é economista e ex-deputado federal. Professor catedrático na Universidade
    de São Paulo.
    Escreve às quartas-feiras.

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