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    Antonio Prata

    Ex

    DE SÃO PAULO

    20/02/2013 03h00

    Marcamos num restaurante perto do trabalho dela, no Itaim --o que me pareceu não só prático, mas tranquilizador: dava ao encontro algo de corriqueiro, prosaico, sem pompa ou circunstância. E por que haveria de ter pompa ou circunstância? Somos apenas ex-namorados, já há muito separados, indo almoçar num dia de semana. Ela pede uma salada e uma Coca Zero; eu, o menu do dia e uma água com gás.

    Ficamos juntos por três ou quatro anos, lá pelos 20 e poucos. Fizemos planos, como fazem todos os casais. Escolhemos nomes para os filhos que não tivemos, combinamos viagens nas quais nunca embarcamos: todo um futuro que, por razões que a própria razão desconhece --ou, mais provavelmente, que a memória achou de bom alvitre apagar--, deu com os burros n'água.

    "Essa é a Dora, na natação", ela me diz, estendendo-me o celular. "Vai passando pra direita. Ó, o Francisco no aniversário de um ano. Os dois juntos na escola..." Vejo algumas fotos de seus filhos, até que entra uma dela beijando o marido, num Réveillon. Entrego-lhe o celular, ela o pega de volta, sem pressa. E por que teria pressa? Não há amor nem mágoa entre nós.

    "O amor acaba", disse Paulo Mendes Campos, em sua crônica mais bonita; só não disse o que fica no lugar. É na esperança, talvez, de entender essa estranha melancolia, esse vazio preenchido por boas lembranças e algumas cicatrizes, que nos encontramos a cada ano ou dois. Marcamos um almoço num dia de semana. Falamos do passado, mas não muito. Falamos do presente, mas não muito. Há uma vontade genuína de se aproximar e o tácito reconhecimento dessa impossibilidade.

    Dois velhos amigos, quando se reveem, voltam no ato para o território comum de sua amizade. Reconstroem o pátio da escola, o Centro Acadêmico, o prédio em que moraram --e o adentram. Em três chopes, refez-se o antigo elo. Para os ex-amantes, no entanto, é impossível restabelecer o elo, o elo morreu com o amor, era o amor. O que sobra é feito um cômodo dentro da gente, cheio de móveis e objetos valiosos, porém trancado. Nesses almoços, estamos sempre no corredor, olhando para a porta fechada. Sentimos saudades do que está ali dentro, mas não podemos nem queremos entrar. Como disse um grego que viveu e amou há 2.500 anos: não somos mais aquelas pessoas nem é mais o mesmo aquele rio.

    Uma vez vi um filme, não me lembro qual, em que um sujeito declarava: "Se duas pessoas que um dia se amaram não puderem ser amigas, então o mundo é um lugar muito triste". O mundo é um lugar triste, mas não porque ex-amantes não podem ser amigos: sim porque o passado não pode ser recuperado. Eis a verdade banal que descobrimos, frustrados, ao fim de cada encontro: toda memória é um luto pelo que vamos deixando para trás.

    "Café?". "Não, obrigada, preciso voltar pro trabalho". "É, eu também tô meio com pressa". Rachamos a conta, nos beijamos nas bochechas, damos um abracinho demorado e chocho, com a ternura triste dos amores findos e seguimos cada um para o seu lado.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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