• Colunistas

    Sunday, 05-May-2024 09:35:38 -03
    Antonio Prata

    Tomadas e oboés

    06/03/2013 03h00

    "O do meio, com heliponto, tá vendo?", diz o taxista, apontando o enorme prédio espelhado, do outro lado da marginal: "A parte elétrica, inteirinha, meu cunhado que fez". Ficamos admirando o edifício parcialmente iluminado ao cair da tarde e penso menos no tamanho da empreitada do que em nossa variegada humanidade: uns se dedicam à escrita, outros a instalações elétricas, lembro-me do meu tio Augusto, que vive de tocar oboé. "Fio, disjuntor, tomada, tudo!", insiste o motorista, com tanto orgulho que chega a contaminar-me. Olho de novo as janelas acesas e sinto-me parcialmente responsável por elas. Esqueço de meu tio Augusto.

    Pergunto quantas tomadas ele acha que tem, no prédio todo. Há quem ria desse tipo de indagação. Meu taxista, não. É um homem sério, eu também, fazemos as contas: uns dez escritórios por andar, cada um com umas seis salas, vezes 30 andares. "Cada sala tem o quê? Duas tomadas?". "Cê tá louco! Muito mais! Hoje em dia, com computador, essas coisas? Depois eu pergunto pro meu cunhado, mas pode botar aí pra uma média de seis tomadas/sala". Ok: 10 x 6 x 6 x 30 = 10.800. Dez mil e oitocentas tomadas!

    Há 30, 40 anos, uma hora dessas, a maior parte das tomadas já estaria dormindo o sono dos justos, mas a julgar pelo número de janelas acesas, enquanto volto para casa, lentamente, pela marginal, centenas de trabalhadores suam a camisa, ali no prédio: criam logotipos, preparam apresentações em powerpoint, estratégias judiciais, calculam custos para o escoamento da soja, negociam minério de ferro. Talvez até, quem sabe, deitado num sofá, um homem escute em seu iPod as notas de um oboé.

    Alegra-me pensar nesse sujeito de olhos fechados, ouvindo música. Bom saber que na correria geral, em meio a tantos profissionais que acreditam estar diretamente envolvidos no movimento de rotação da Terra, esse aí reservou-se cinco minutos de contemplação.

    Está tarde, contudo. Algo não fecha: por que segue no escritório, esse homem? Por que não voltou para a mulher e os filhos, não foi para o chope ou o cinema? O homem no sofá, entendo agora, está ainda mais afundado do que os outros. O momento oboé era apenas uma pausa para repor as energias, logo mais voltará à sua mesa e a seus logotipos, à soja ou ao minério de ferro. Quem sabe ele seja o executivo de uma gravadora? Em breve ligará para um subordinado, dirá que gostou de tudo, menos do oboé. "Corta o oboé, Miranda! Lima o oboé!". Como andará meu tio Augusto?

    "Onze mil, cento e cinquenta", diz o taxista, me mostrando o celular. Não entendo. "É o SMS do meu cunhado: 11.150 tomadas.". Olho o prédio mais uma vez, admirado com a instalação elétrica e nossa heteróclita humanidade, enquanto seguimos, feito cágados, pela marginal.

    *

    Em minha coluna do dia 30 de janeiro cometi um erro, apontado por leitores. Afirmei que os pilotos do voo 402 da TAM, que caiu em 1996, haviam desligado o alarme do reverso da turbina.

    O alarme que desligaram foi o de um dispositivo chamado "Auto-throttle": desativá-lo era o procedimento correto naquela situação, segundo laudo da aeronáutica, e o ato não teve relação com o acidente.

    antonioprata.folha@uol.com.br
    @antonioprata

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024