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    Antonio Prata

    Impressões digitais

    22/09/2013 01h30

    Isso não é um dedão do pé, é uma declaração de princípios, pensei, assim que o pintor sentou na cadeira de praia, ao meu lado. Da primeira falange, brotava meia dúzia de pelos mal-ajambrados, feito capim que tivesse nascido numa rachadura da calçada, secado ao sol e sido descabelado pelo vento. A unha não devia ser cortada havia uns três meses --ou, pelo menos, não inteiramente cortada, pois a frente, que na maioria dos dedões é uma reta ou uma meia-lua, era quase um S, como se ele houvesse dado uma dentada com o Trim, dito "Ah, que se dane..." e resolvido ir pintar um quadro, beber conhaque ou cair nos braços de uma de suas assistentes --sempre lindas, sempre jovens, sempre apaixonadas pelo grande artista.

    Sob os dois cantos da unha havia aglomerações escuras, em que uma escavação arqueológica certamente encontraria: tinta óleo, aquarela, fixador; seda para cigarros, cashmere, pelos de pincel; poeira de botecos sórdidos do centro do Rio, poeira de restaurantes chiques de Nova York, certa poeira oriunda da Amazônia colombiana; uma ou outra assistente linda, jovem e fossilizada.

    O conjunto da obra formava uma instalação, uma metonímia do artista, onde se lia seu desprezo pelas coisas chãs: nosso asséptico "zeitgeist", nossa crença na manutenção do corpo e no reinado do Photoshop. Afirmava-se, ali, a prevalência das pulsões sobre a razão e vislumbrava-se a aceitação da morte. Um dedão romântico. Um dedão beatnik. Um anacrônico dedão.

    Correndo pela praia, veio o jovem colecionador do mercado financeiro, dono da casa em que o pintor estava hospedado. Sentou, deu um gole num isotônico, tirou o tênis, e a paisagem mudou da água pro vinho --ou, mais precisamente, do vinho pra água. Não seria absurdo se alguém afirmasse que ele tinha corrido até o fim da praia, parado num podólogo e voltado. Aquele dedão também não era apenas um dedão, mas sim uma declaração de princípios. Se você chegasse bem perto, veria, onde o artista cultivava o anárquico tufo de capim, apenas uns furinhos --o jovem colecionador do mercado financeiro arrancava os pelos com pinça, um a um, a cada 15 dias. A unha era um retângulo perfeito, pequena tela brilhante capaz de refletir as nuvens do céu em full HD. Os cantos estavam impecavelmente limpos: uma escavação arqueológica sairia de mãos vazias, dando apenas, talvez, com um leve odor de Pato Purific.

    O conjunto da obra era uma metonímia do jovem colecionador do mercado financeiro. Uma ode ao controle, ao planejamento, um pequeno totem anal-retentivo, em homenagem ao mundo administrado. Aquele dedão comemorava o triunfo da razão sobre os instintos, a vitória do homem sobre a natureza, cria-se imbatível, imortal, dava um pontapé na passagem do tempo. Um dedão de alta performance. Um dedão ISO 9000. Um atualíssimo dedão.

    Os dois se levantaram e foram em direção ao mar, discutir, com água pelas canelas, quanto custaria para a visão de mundo de um ir parar em cima da lareira do outro.

    Eu fiquei ali, sozinho com meus dedões.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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