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    Antonio Prata

    Sozinho

    18/05/2014 03h00

    Ele virou pra mim com a testa franzida e a boca entreaberta, como se fosse perguntar as horas ou o itinerário de um ônibus, mas logo se voltou pra frente, olhou aflito a loja de instrumentos musicais do outro lado da rua, então me encarou perplexo, caiu sentado na calçada —e morreu.

    Eu nunca tinha visto alguém morrer. Mortos, sim, alguns, mas sempre no caixão, entre flores e parentes, naquele clima dos velórios que, se não anula o absurdo da morte, ao menos nos prepara para o encontro. Ali no ponto de ônibus, porém, não teve preparo: três segundos antes o sujeito estava vivo, a 40 centímetros de mim, esperando o Parque Ipê ou o Brasilândia, três segundos depois, não estava mais. Morreu sentado, de olhos abertos, a perplexidade aos poucos largando seu rosto e se agarrando ao meu.

    Tentei levantá-lo, com mais dois caras do ponto —ainda não sabíamos que estava morto—, mas logo saiu uma mulher da lanchonete, disse que era enfermeira, botou dois dedos no pescoço do homem e, um pouco depois, fez um não com a cabeça. Sob suas instruções, tentamos uma massagem cardíaca, mas não funcionou. A enfermeira ligou para um número da prefeitura e, num desses atos de generosidade de que só as mulheres são capazes, disse que ficaria lá até o sistema funerário chegar.

    Meu ônibus chegou e entrei assustado, achando estranhíssimo que ninguém ali soubesse o que tinha acabado de acontecer, que ninguém ali desconfiasse que do lado de lá da lataria havia um corpo que instantes atrás estava vivo e que o mesmo poderia —e vai— acontecer a qualquer um de nós, a qualquer momento.

    Sei que, em breve, essa cena estará guardada em alguma gaveta da memória e, com o tempo, vai amarelar, como feliz e infelizmente tudo amarela, mas agora a trago tatuada no verso das minhas pálpebras: é a primeira coisa em que penso, ao acordar, é a última coisa em que penso antes de dormir; o homem me olhando, curioso, olhando a vitrine da loja, aflito, me encarando perplexo —e morrendo.

    Repasso os três atos, vez após outra. A percepção de que algo ia errado e a busca de cumplicidade. A compreensão de que a cumplicidade não serviria para nada e o olhar para a frente, como se quisesse confirmar que o mundo ainda estava ali, que a rua continuava existindo, os carros passando, que a loja de instrumentos musicais seguia no mesmo lugar, dando um desconto de 30% no violão Di Giorgio da vitrine. Por fim, quando entendeu que o mundo permanecia intacto, mas ele, não, veio a perplexidade. Havia menos revolta do que susto em seu olhar. Então é assim? Num ponto de ônibus? Numa terça-feira, às 15h37, entre uma lanchonete e uma loja de instrumentos musicais, sem trombetas nem iluminações?

    Quando fico muito aflito —e sabendo que não conseguiria tirar a cena da cabeça—, tento ao menos mudar o enfoque da memória. Lembro da enfermeira que se prontificou a aguardar no ponto até a chegada do serviço funerário. Vejo a mulher ali, esperando por horas, talvez, faltando a não sei quais compromissos, a imagino ligando para uma vizinha, pedindo pra olhar os seus filhos quando chegarem da escola, e, por um momento, a mesquinhez da morte é atenuada por esse ato de humanidade, tão belo quanto inútil: a recusa em deixar o morto sozinho.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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