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    Antonio Prata

    Um escritor! Um escritor!

    25/05/2014 03h01

    Com o jornal numa mão e um guaraná diet na outra, eu caminhava pelas ruas de Kiev, desviando de barricadas e coquetéis molotov, quando a voz no sistema de som me trouxe de volta à poltrona 11C do Boeing 737: "Atenção, senhores passageiros, caso haja um médico a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários".

    Foi aquele discreto alvoroço: todos cochichando, olhando em volta, procurando o doente e torcendo por um doutor, até que, do fundo da aeronave, despontou o nosso herói. Vinha com passos firmes —grisalho, como convém—, a vaidade disfarçada num leve enfado, como um Clark Kent que, naquele momento, estivesse menos interessado em demonstrar os superpoderes do que em comer seus amendoins.

    Um comissário o encontrou no meio do corredor e o levou, apressado, até uma senhora gorducha que segurava a cabeça e hiperventilava na primeira fileira do avião.

    O médico se agachou, tomou o pulso, auscultou peito e costas, conversou baixinho com ela, depois falou com a aeromoça. Trouxeram uma caixa de metal, ele deu um comprimido à mulher e, nem dez minutos mais tarde, voltou pros seus amendoins, sob os olhares admirados de todos.

    Ou de quase todos, pois a minha admiração, devo admitir, foi rapidamente fagocitada pela inveja. Ora, quando a medicina nasceu, com Hipócrates, a história de Gilgamesh já circulava pelo mundo havia mais de dois milênios: desde tempos imemoriais, enquanto o corpo seguia ao deus-dará, a alma era tratada por mitos, versos, fábulas —e, no entanto...

    No entanto, caros leitores, quem aí já ouviu uma aeromoça pedir, ansiosa: "Atenção, senhores passageiros, caso haja um escritor a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários"?

    Eu não me abalaria. Fecharia o jornal, sem afobação, poria uma Bic e um guardanapo no bolso, iria até a senhora gorducha e me agacharia ao seu lado. Conversaríamos baixinho.

    Ela me confessaria, quem sabe, estar prestes a reencontrar o filho, depois de dez anos brigados: queria falar alguma coisa bonita pra ele, mas não era boa com as palavras.

    Eu faria uma rápida anamnese: perguntaria os motivos da briga, se o filho estava mais pra Proust ou pra UFC, levantaria recordações prazerosas da relação e, antes de tocarmos o solo, entregaria à mulher três parágrafos capazes de verter lágrimas até da estátua do Borba Gato.

    De volta ao meu lugar, passageiros me cumprimentariam e compartilhariam histórias semelhantes. Uma jovem mãe me contaria do primo poeta que, num restaurante, ao ouvir os apelos do garçom —"Um escritor, pelo amor de Deus, um escritor!"—, tinha sido levado até um rapaz apaixonado e conseguido escrever seu pedindo de casamento no cartão de um buquê antes que a futura noiva voltasse do banheiro.

    Um senhor comentaria o caso muito conhecido do romancista que, após as súplicas de mil turistas, fora capaz de convencer 200 tripulantes de um cruzeiro a abandonar o gerúndio.

    Eu sorriria, de leve. Diria "Pois é, se você escolheu essa profissão, tem que estar preparado pras emergências", então recusaria, educadamente, o segundo saquinho de amendoins que a aeromoça me ofereceria e voltaria, como se nada tivesse acontecido, para as bombas da Crimeia, com meu copo de guaraná.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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