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    Antonio Prata - Marcelo Quaz

    Véspera

    11/06/2014 02h00

    Véspera me remete a vespa, espera, áspero. É dessas palavras que vestem o significado como uma luva. Luva, aliás, é outra delas: você diz l-u-v-a e quase dá pra sentir os dedos deslizando pelos orifícios. Já orifício, convenhamos, não tem nada a ver com buraco. Parece mais uma ferramenta de ourives, um burocrata da época do império, um ato de extrema covardia —"contra os inimigos, era capaz dos piores orifícios".

    Bobagem. Covarde sou eu, aqui, tentando fugir do tema desta crônica enfiando a cabeça no primeiro orifício que aparece, como um avestruz: o tema é a véspera, essas vinte e quatro horas que nos picam feito vespas, até que um apito dê início à Copa e fim à nossa áspera espera.

    Fujo porque estou nervoso e ficar nervoso é o que se faz às vésperas: de jogo, de trabalho novo, de primeiro encontro. Anda-se em círculos, roem-se as unhas, imaginam-se dilúvios, panes, brancos e demais desastres; então, bate-se na madeira e tenta-se pensar em outros assuntos.

    Penso na uva, por exemplo, no ovo, no hipopótamo: há na natureza uma fruta com mais cara de uva do que a própria? Algo mais oval do que o ovo? Bicho mais hipopótico do que o hipopótamo? Não, não há -e essa ideia me reconforta por uns segundos, como um chutão afastando a bola da nossa zaga.

    Não, não, a imagem tá errada, pensar em uvas, ovos e hipopótamos não é dar chutão, é trocar passes na defesa: Thiago Silva, David Luiz, Daniel Alves... Luva, orifício, uva...

    Ouço vaias da torcida? Tá certo. Futebol se joga é pra frente. Se o Paulinho e o Oscar que trago dentro de mim, nervosos, não estão dando conta de levar o texto da nossa zaga até a meta adversária, o jeito é tentar um lançamento em profundidade. E quem mais profundo, entre os titulares da minha estante, do que o dicionário etimológico? "Véspera", ele me diz, vem do latim, "Vésper", o planeta Venus, primeiro corpo celeste a brilhar no fim da tarde, também conhecido como Estrela D'alva -aquela que "no céu desponta", deixando a lua "tonta com tamanho esplendor".

    Vejam só como, num único lance, o jogo pode mudar do buraco do avestruz para a abóboda celeste, do frio na barriga para a deusa do amor e da beleza. Bastou não nos intimidarmos, não permitirmos que o medo de perder fosse maior do que o desejo de ganhar.

    Amanhã, quando soar o apito, lembrem-se que vocês só chegaram aí porque gostavam, mais do que tudo, de jogar futebol. Joguem com vontade: então suas estrelas despontarão no gramado e deixarão os holofotes tontos "com tamanho esplendor". Opa, acho que me empolguei. Dane-se, agora é tarde, agora é Copa! E as pastorinhas? "E as pastorinhas/ pra consolo da lua/ Vão cantando na rua, lindos versos de amor", pom, pom, pom, póóóm.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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