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    Antonio Prata

    Daniel

    08/02/2015 02h00

    Se esta crônica está sendo publicada hoje, é porque nasceu o meu filho, Daniel. (Se esta crônica não está sendo publicada hoje, é porque ele ainda não nasceu, mas, se ele ainda não nasceu e esta crônica não está sendo publicada hoje, esta frase não tem razão de ser, uma vez que não será lida por ninguém além de mim e da Andressa, do "Cotidiano", a quem mando o texto no fim da gravidez, por precaução. Tudo bom, Andressa? Não, Andressa, eu não quis dizer que a gente era ninguém. Ah, o correto é "a gente não era ninguém"? Com a dupla negativa mesmo? Hmmm. Obrigado, Andressa. Eu não quis dizer que a gente não era ninguém, mas é que as crônicas costumam ser pra mais do que duas pessoas. Se bem que, pensando melhor, nem todas. Esta aqui, por exemplo, é pra uma pessoa só. Afinal, como eu ia dizendo até ser interrompido pela visita inesperada de uns parênteses, se esta crônica está sendo publicada hoje, é porque você nasceu, Daniel.)

    Você era ninguém, agora você é alguém -e, acredite, filho, essa é a coisa mais fantástica que pode acontecer com ninguém em todo o universo. Eu digo "acredite" porque não é exatamente um consenso por estas bandas ultrauterinas.

    Há quem fique na dúvida entre ser ou não ser, há quem diga que chove muito ou pouco e que há dor de dente e nas costas e tantas outras dores do mundo que o melhor seria não ser ou ser granito ou fumaça, o que dá na mesma. Um homem muito sabido chegou a dizer que o que todo mundo quer é voltar praquele lugar morninho do qual você acabou de sair. Talvez ele tenha razão, mas, como a via é de mão única, eu digo para o seu alento: tem muito programa bom por aqui.

    Não sei nem por onde começar, porque não sei ainda do que você gosta. Eu e a sua mãe vamos tentar mostrar um pouco de tudo, aí você decide. Carne, peixe, frango; Palavra Cantada, Ramones, Cartola; mar, campo, cidade; arara, camelo, avestruz; tinta, massinha, carvão; Corinthians, Corinthians, Corinthians -lamento, filho, mas, por mais pluralistas que sejamos, há algumas regras que precisam ser seguidas. Brincadeira, eu vou te amar mesmo que o seu avô te converta num são-paulino. Mas saiba que isso vai dificultar um pouco a nossa relação. E muito a minha relação com o seu avô. É uma escolha sua. E do seu avô. (Tá dado o recado, Mario Luiz.)

    Daniel, prometo que vamos fazer o que estiver ao nosso alcance pra te ajudar, mas desde já peço desculpas por nossos inúmeros tropeços. Embora estejamos mais experientes depois da Olivia -duvido, por exemplo, que em vez de pomada pra assaduras passemos pasta de dentes no seu bumbum (as bisnagas eram idênticas! Caramba, Weleda!)-, alguns deslizes são inevitáveis.

    Esta crônica tá meio confusa, verdade. É que é difícil esse negócio de dar as boas-vindas a alguém que chega ao mundo. Não sei se falo do Drummond ou do dedo na tomada, se calo ou te compro uma bicicleta. Tudo bem, faz parte. A vida também é confusa, Daniel. É confusa, chove, dói dente, costas e outros costados, mas vale muito a pena. Você não existia, agora existe: esse é o grande milagre diante do qual nos curvamos, crentes ou ateus, corintianos ou são-paulinos. Seja bem-vindo, meu filho, seja o que você quiser, seja o que você puder, desculpa qualquer coisa -e cuidado com as tomadas.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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