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    Antonio Prata

    Texugos

    08/03/2015 02h00

    Era uma vez um texugo muito pobre e injustiçado. O texugo muito pobre e injustiçado passou a adolescência lendo textos, vendo filmes e assistindo a peças que denunciavam as causas da pobreza e da injustiça, de modo que se transformou num texugo muito pobre, injustiçado e revoltado.

    Um dia, o texugo muito pobre, injustiçado e revoltado não aguentou mais e decidiu ele também escrever textos, filmes e peças denunciando as causas da pobreza e da injustiça. Para surpresa do texugo muito pobre, injustiçado e revoltado, seus textos, filmes e peças fizeram um retumbante sucesso e ele passou a ganhar rios de dinheiro e a frequentar restaurantes caros e festas de ricos e famosos que achavam mui cool ser amigo do texugo que tinha sido muito pobre e injustiçado e escrevia textos, filmes e peças revoltados.

    Uma noite, em sua cobertura, um pouco bêbado de vinho francês, o texugo que tinha sido muito pobre e injustiçado olhou para os móveis de sua sala, para os sapatos em seus pés, para os quadros nas suas paredes e sentiu que aquela revolta não condizia com a posição que ocupava. Então, depois de alguma deliberação não inteiramente consciente, o texugo muito rico e nada injustiçado reformulou sua revolta: dali em diante, passou a escrever textos, filmes e peças revoltados contra os textos, filmes e peças revoltados que denunciavam as causas da pobreza e da injustiça, pregando que era tudo coisa de vagabundo e maconheiro que não trabalhava que nem ele pra subir na vida e ser alguém.

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    Era uma vez outro texugo muito pobre e injustiçado que também escrevia textos, filmes e peças denunciando as causas da pobreza e da injustiça. Os textos, filmes e peças desse texugo muito pobre e injustiçado eram chatíssimos, confusos e cheios de lugares-comuns, mas como ele era um texugo muito pobre e injustiçado, as pessoas liam os textos, assistiam aos filmes e peças chatíssimos e confusos e cheios de lugares-comuns e saíam dizendo umas pras outras as mil maravilhas e mais tarde descansavam suas cabeças sobre travesseiros de plumas acreditando terem feito algo contra a pobreza e a injustiça.

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    Era uma vez um texugo muito rico e mordaz que percebia a chatice, a confusão e os lugares-comuns nos textos, filmes e peças do texugo muito pobre, injustiçado e sem talento. O texugo muito rico e mordaz escrevia posts jocosos no Facebook denunciando o outro como uma grande fraude. Metade dos seguidores do texugo muito rico e mordaz comentava "KKKKKKK!!!" nos posts jocosos e ficava aliviada porque, se o texugo muito pobre e injustiçado era um embuste, toda a tentativa de denunciar a pobreza e a injustiça era também um embuste e o melhor a fazer era descansar a cabeça sobre travesseiros de plumas e pensar em assuntos mais agradáveis do que a pobreza e a injustiça. A outra metade dos leitores do texugo muito rico e mordaz o desacreditava, porque ele era muito rico e mordaz e reafirmava nos comentários dos posts jocosos seu amor pela obra chata, confusa e cheia de lugares-comuns do texugo muito pobre e injustiçado. E é por essas e outras que os texugos tão do jeito que tão e há quem ache que o melhor mesmo é que venha logo um meteoro e acabe com essa esbórnia de uma vez por todas.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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