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    Antonio Prata

    Uma freira de verdade

    10/05/2015 02h00

    A voz no sistema de som avisa que o embarque foi encerrado. Olho as poltronas vazias ao meu lado e sorrio, naquela pequena euforia que nos toma quando encontramos uma vaga bem na frente do cinema ou damos com o banco sem viv'alma na fila –como se o nosso anjo da guarda, num momento de bom humor, resolvesse nos dar uma gorjeta. O meu anjo da guarda, porém, deve estar com o humor um pouco avariado, pois não só guarda a gorjeta no bolso como me bate a carteira: eis que surge, detrás do biombo que separa dos passageiros a porta do avião, uma freira. É botar os olhos nela para ter certeza –não sem alguma aflição, confesso– de que irá se sentar ao meu lado.

    Não quero soar preconceituoso, mas é impossível evitar: nunca me sentei ao lado de uma freira. Ateu, filho de ateus, aluno de ateus, leitor de ateus, amigo de ateus, casado com uma ateia e, se Deus quiser, pai de dois ateusinhos, freiras são, para mim, personagens excêntricas que só existem nos filmes do Fellini, nas calçadas de Perdizes (perto da faculdade Santa Marcelina) e, por algum mistério, em aeroportos.

    Com passinhos curtos, conferindo os números dos assentos, ela vem se aproximando. Quase a chamo, "Irmã! Irmã! É aqui! Tenho certeza que é do meu lado!", mas não é necessário: ela para a cinco centímetros do meu cotovelo e, com um sorriso protocolar, me pede licença. Levanto e noto, surpreso, que aquele sorriso falso me incomodou. Percebo que, por trás da minha aflição, havia certa expectativa: vou conhecer uma freira! Uma freira de verdade! E, na minha cabeça, uma freira de verdade traz Jesus no coração: para ela, todo encontro deveria ser genuíno e prazeroso.

    Decolamos. O nervosismo me faz esquecer da freira e, em seguida, me faz lembrar dela, de novo: tenho medo de voar, mas ao meu lado há alguém que confia nos inescrutáveis desígnios da Providência, alguém que tem fé na salvação e na vida eterna. Penso que olhá-la, nem que de relance, me trará algum conforto. Para meu espanto, contudo, a freira se agarra aos apoios de braço como a mais desamparada das ateias diante da possibilidade de aniquilação. Tenho vontade de repreendê-la: "Um policial não pode ter medo de ladrão, um médico não pode chorar numa consulta, um padeiro não pode ser intolerante a glúten: aja como uma freira!".

    Ela, definitivamente, não age: assim que aterrissamos, o avião mal acabou de taxiar, os sinais de apertar cintos continuam acesos, a voz no sistema de som pede para que todos permaneçam sentados, mas a freira se levanta e me encara, um sorrisinho passivo-agressivo nos lábios, querendo passar. Ora, os desígnios da Providência podem ser inescrutáveis, mas as normas da Anac, não. Finjo que não é comigo. Ela se adianta três centímetros, quase roçando nas minhas pernas. Abro a revista de bordo. "Licença?!", ela pede, ligeiramente indignada. Eu aponto o aviso luminoso e ali permaneço, inabalável, vendo seu ódio contido crescer em minha visão periférica, sem saber se estou provocando a ira de Javé ou –me ocorre, num estalo– arrumando encrenca com uma talentosíssima traficante de drogas. Como já disse, não creio em Deus, mas, se tiver que escolher entre as duas opções acima –vai que?–, fico com a segunda.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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