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    Antonio Prata

    Tal pai, tal filho

    17/05/2015 02h00

    Não é uma questão subjetiva, que seria facilmente explicada por um psicanalista com termos como "projeção" ou "deslocamento" ou sei lá quais nomes dão os psicanalistas para casos semelhantes, é um fato objetivo, constatado por todos os que nos visitam ou veem as fotos no Instagram: meu filho é idêntico ao meu pai.

    Não idêntico ao meu pai quando criança, mas idêntico ao meu pai, hoje: o mesmo sorriso irônico quando faz gracinhas, a mesma carranca furibunda quando é contrariado. Às vezes, indo espiá-lo no berço, temo encontrá-lo com um Minister aceso no canto da boca –então me lembro que o meu pai parou de fumar e respiro aliviado.

    Sei que é normal eles se parecerem. Afinal, 25% dos genes do meu filho vieram do avô –e, por alguma razão, 100% desses genes resolveram se estabelecer na região que vai do queixo ao cocuruto–, mas que é estranho olhar pra um bebezinho de três meses e ver ali meu progenitor, de 69 anos, é. Tal semelhança, confesso, tem atrapalhado um pouco a nossa relação. Minha com o meu filho, digo. Minha com o meu pai, digo também.

    Quando nasce um filho, o amor não é imediato. Pelo menos, no caso dos meus dois, não foi. Ao pegar minha primeira filha no colo, olhei-a nos olhos e pensei, assustado: "E agora, meu Deus, não temos nenhuma intimidade!".

    Devagarinho, contudo, o amor vai nascendo. Você troca a fralda, passa pomada, pinga Rinosoro, nina o bebê revoltado às dez pras quatro da manhã e, mistério dos mistérios, quanto mais coisa chata você faz, mais o seu amor cresce, até o ponto em que se vê completamente apaixonado, descrevendo para uma plateia bocejante ou enojada os incríveis aspectos físico-químicos do cocô daquela manhã.

    O problema do meu filho ser a cara do meu pai é que tá dando uma linha cruzada nos vínculos. Na última quarta, por exemplo, meu pai me ligou, lá pela meia-noite, pra falar mal do Corinthians, que perdeu pro Guaraní paraguaio e foi limado, ou melhor, "tolimado" da Libertadores.

    Atendi mal-humorado. Por quê? Ora, porque eu estava há mais de uma hora olhando pra sua cara chorosa, quero dizer, pra cara chorosa do meu filho, em meus braços, tentando fazê-lo dormir. Como pode um senhor de 69 anos demorar tanto pra pegar no sono?

    Eu já sabia, com a minha psicanálise de botequim, que o nascimento de um menino cria o tal triângulo edípico, que a criança se interpõe entre marido e esposa e que dá ciúmes daquele outro homem, mesmo sabendo que ele é um nenenzinho.

    Agora, imaginem a minha situação: todo dia, várias vezes, flagro minha mulher dando o peito pro meu pai. Cantando pro meu pai. Dando banho no meu pai. E eu lá, quietinho, do lado, fazendo bilu-bilu –no meu pai.

    Tá puxado. E, pra piorar, minha psicanalista mudou pra Argentina. Ela sugeriu fazermos sessões por Skype, mas tenho medo de minhas neuroses serem hackeadas e exibidas no Fantástico. Pelo visto, terei que me virar sozinho. Beleza. Vamos que vamos. Vai dar tudo certo.

    Meu pai, quer dizer, meu filho, você pode ficar tranquilo, pois será cuidado com todo amor e carinho: mesmo porque, daqui a algumas décadas, deste saquinho besuntado de Hipoglós, sairei eu –e o mínimo que espero é reciprocidade no tratamento.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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