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    Antonio Prata

    Seminovos, único dono

    31/05/2015 02h00

    Veja bem: apesar de este texto figurar no alto de uma página de jornal, veículo cujo propósito é publicar notícias, este texto não é uma notícia. Este texto é uma crônica. A diferença, grosso modo, é que as notícias só às vezes são ficção, enquanto as crônicas sempre são. Se o Alckmin afirma que não há por que se preocupar com a crise hídrica, por exemplo, ou a Dilma garante "Nenhum direito a menos, nenhum passo atrás", você deve desconfiar que seja mentira; já se eu digo que comprei uma bicicleta ou que pulei de paraquedas, pode ter certeza que é. Afinal, mesmo que eu tenha de fato comprado uma bicicleta ou pulado de paraquedas, ao escrever a crônica vou mudar a cor do banco, aumentar a queda-livre, vou sair empinando pela Marginal, talvez bata papo com um urubu.

    Ano retrasado, resolvi publicar aqui um texto irônico, com um narrador reacionário e hidrófobo, para ridicularizar opiniões racistas, homofóbicas, machistas e que tais. Algumas horas depois de enviar a crônica, recebo um telefonema da Folha. Gentile, o secretário de Redação, gentilmente me sugere que a piada não iria ser compreendida. "Ironia não funciona em jornal". Como não? O texto era um despautério do começo ao fim. Afirmava que, por conta das cotas, o homem branco se encontrava escanteado no Brasil, que os índios tinham acabado com o agronegócio, que José Maria Marin, ex-membro da Arena (e atual hóspede do FBI), era comunista –e por aí ia. Ou não ia, segundo o Gentile: "Ironia não funciona em jornal". Mas eu, que teimo em apostar no ser humano, mesmo depois de ter assistido a um documentário de nove horas sobre o holocausto e de ter participado de mais reuniões de condomínio do que aconselharia qualquer hepatologista (na última delas, negou-se plano de saúde aos funcionários e aprovou-se, por unanimidade, a reforma da fachada), resolvi pagar pra ver –e quase paguei com a minha liberdade. Fui processado. Por racismo. A juíza, felizmente, entendeu que racista era o personagem de um texto FICCIONAL, não eu, de modo que estou escrevendo aqui de casa, não da cadeia, entre perigosos meliantes do PCC, da OAS ou da UTC.

    Todo esse "tour de force" é porque, hoje, eu gostaria de ter publicado uma crônica engraçada sobre as agruras de ter filhos. Eu diria que, vendo o casamento afundar, o dinheiro rarear e as olheiras crescerem, eu e a minha mulher havíamos percebido que a nossa geração, hedonista e autocentrada, era incompatível com a paternidade. Decidíamos, então, botar as crianças à venda, viajar pela Ásia e dar um refresh na relação. Ao começar a escrever, contudo, temi que me levassem a sério, que a Vara da Infância de Cotia nos tirasse a guarda das crianças, que, qualquer dia desses, na saída do "Saltimbancos", apanhássemos da plateia. Ora bolas, seria uma peça de FICÇÃO. IRÔNICA. Por mais trabalho que me deem, por mais reais e noites de sono que me custem, nada na vida se iguala a ter filhos e eu não os trocaria nem por um milhão de dólares. (Por cinco, já podemos começar a conversa: ela, dois anos, ele, três meses, carteirinha de vacinação completa, único dono. Interessados, por favor, DM no Twitter ou inbox no Facebook).

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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