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    Antonio Prata

    Lucy in the sky with diamonds

    25/10/2015 02h00

    No carro, voltando da escola, eu e a minha filha de dois anos e meio.

    - Papai, biscoito!

    - Não tem biscoito aqui, filhota.

    - Tem biscoito em casa, papai?

    - Tem, tem biscoito em casa.

    - Tem bolo em casa, papai?

    - Não sei, chegando lá a gente vê.

    - Tem mamãe em casa, papai?

    - Tem mais tarde, a mamãe viajou, ela volta à noite.

    - Viajou na estrada?

    - Isso, na estrada.

    - [Cantarola] Pela estrada afora eu vou bem sozinha... [Se cala por uns segundos, então solta, assertiva, como que se defendendo de uma acusação]. Eu não tô dodói!

    - Não, você não tá dodói. A vovó da Chapeuzinho é que tá dodói.

    - Meu joelho não tá dodói! [Ela tinha ralado o joelho no último fim de semana. Agora olha o joelho, encafifada]. O dodói saiu do joelho, papai.

    - É, o dodói saiu.

    - [Súbita iluminação] Ele foi pra casa dele! O dodói foi pra casa dele!

    - O dodói foi pra casa dele, é?

    - [Quase blasé, falando sobre um fato corriqueiro] Foi. Tá lá na casa dele. Com a mamãe dele... Com o papai dele...

    - Hm. E o irmãozinho dele? O dodói tem um irmãozinho? [Tento enfiar um irmãozinho pro dodói, de contrabando, pra minha filha ver que todo mundo tem irmãozinho e ela não precisa sentir ciúmes do dela].

    - [Sacando a manobra, brava, como quem percebe o brócolis disfarçado no purê] Não! Tem biscoito na casa do dodói!

    - Hm, tem biscoito na casa do dodói.

    - [Muito feliz] Tem, papai! [Aflita] Papai, não tem bolo na casa do dodói!

    - Não tem bolo?

    - Não! [Ainda mais aflita] Precisa comprar bolo pra casa do dodói, papai! Precisa comprar bolo pra casa do dodói, papai! É aniversário dele! [Ameaçando chorar] É aniversário do dodói! Não tem bolo!

    - Tudo bem! A vovó do dodói tá indo pra casa do dodói e ela vai comprar bolo no caminho.

    - Não é no caminho que tem bolo, papai, é no supermercado!

    - Isso, no supermercado.

    - [Aliviada] A vovó do dodói vai comprar bolo pro dodói! [Falando diretamente com a vovó do dodói, no supermercado, dura] Compra brigadeiro também, vovó do dodói! Compra brigadeiro de morango e brigadeiro de chocolate! Papai, a vovó do dodói vai comprar bolo e brigadeiro pro dodói!

    - Que bom. E quem mais tá na casa do dodói? A mamãe do dodói, o papai do dodói, quem mais?

    [Longo silêncio]

    - Eu sou a fada do dente.

    - [Confuso -não tenho a menor ideia de quem seja a "fada do dente"-, mas feliz com a possibilidade de embarcar em outro enredo lisérgico] Quem é a fada do dente?

    - [Surpresa com a pergunta] Sou eu.

    - Claro. E a fada do dente gosta de bolo? Ela vai na festa do dodói?

    - [Fica quieta por um tempo. Suspira, com preguiça da minha pergunta, preguiça da festa do dodói, da família do dodói, talvez da nossa família também; então, observa o trânsito lá fora, fecha os olhos e canta, buscando algum conforto para sua melancolia nos versos do cancioneiro popular brasileiro] A sapa na lava a pá/ Na lava parqua na cá/ Ala mara lá na lagaa/ Na lava a pá parqua na cá/ Mas qua chalá.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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