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    Antonio Prata

    Mal ajambrados

    28/02/2016 02h00

    O problema não era nas minhas costas, disse o médico, era na nossa espécie. Então tirou da estante um velho livro de anatomia e mostrou que a coluna e o abdome humanos haviam se desenvolvido durante milhões de anos para sustentar quadrúpedes, não bípedes.

    Acontece que lá nas savanas da África, num dia iluminado para o intelecto e aziago para a lombar, algum ancestral conseguiu se apoiar em duas pernas, posição que lhe permitiu enxergar mais longe e ter as mãos livres para construir ferramentas, fazer cafuné e jogar joquempô.

    A ereção do hominídeo impressionou muitíssimo as hominídeas do bando, que vieram todas correndo e gritando "Seus genes! Seus genes! Queremos espalhar seus genes!", razão pela qual passamos a andar sobre duas pernas e a bufar com as mãos nas costas, per saecula saeculorum. O médico fechou o livro e me indicou um pilates.

    Enquanto ergo lentamente o "core", ao lado de mais seis ou sete entrevados bípedes que buscam, a duras penas, o fortalecimento torácico, sou tomado por um pensamento: e se, em vez de levantar, o macacão tivesse deitado? E se, em vez de passarmos de quatro para dois apoios, tivéssemos evoluído para nenhum?

    Ah, que futuro lindo nós perdemos! Em vez de andarmos envergados por aí, enfrentando passo a passo a inclemente gravidade, viveríamos nos arrastando ou rolando mundo afora, feito leões marinhos, feito morsas gordas e descansadas, sem jamais desconfiar que sob nosso adiposo sleeping-bag corporal haveria horrores chamados "lombar" ou "escoliose" ou "lordose" ou "hérnia de disco".

    Dizem os biólogos que o bipedalismo foi crucial para o desenvolvimento humano –e não me refiro só à pedra lascada, ao cafuné e ao joquempô. Tirar a fuça do chão e pôr os olhos no horizonte sentenciou a primazia da visão sobre o olfato, do intelecto sobre os instintos, da cultura sobre a natureza e daí pra escrevermos sonetos, inventarmos a pizza com borda recheada de catupiry e projetarmos drones que entregam sonetos ou pizzas com borda recheada de catupiry foi um pulo.

    Mas quem disse que, deitados, não poderíamos ir ainda mais longe –mesmo sem sair do lugar? Quem sabe o que teria acontecido se, em vez de Homo erectus, depois Homo sapiens e Homo sapiens sapiens, evoluíssemos para Homo statelatus, depois para o Homo statelatus sapiens e –por que não?–, Homo statelatus sapientisimus?

    Sim, pois se enxergar mais longe nos deu a chance de encontrar mais comida e mais comida resultou no aumento do nosso cérebro, imagina o tamanho da nossa cachola com todas as calorias economizadas em uma existência 100% horizontal. Seríamos hoje morsas cabeçudas discutindo física quântica e James Joyce com as panças esparramadas no chão?

    Não há como saber. A biologia só consegue traçar o caminho percorrido, não os infinitos labirintos genéticos que deixamos de percorrer. Me resta apenas amaldiçoar o ancestral que primeiro se ergueu, fazer mais trinta segundos de "fortalecimento de oblíquo" e três séries de "abdominais laterais sobre a bola suíça", a fim de ajudar minha mal ajambrada verticalidade a dar com menos dor os passos que lhe restam antes que um susto, uma bala ou os vícios me ponham, definitivamente, na horizontal.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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