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    Antonio Prata

    Tecla SAP do humor

    29/05/2016 02h00

    Algum dia essa nuvem negra estacionada entre o Guaíba e o Amazonas há de se dissipar, o Congresso deixará de ser o valhacouto dos velhacos, o covil dos covardes, o desvão dos desvios e o Legislativo finalmente retratará os múltiplos interesses nacionais.

    Nesse dia glorioso, entre deputadas vegetarianas e senadores hip-hop, entre ianomâmis e sadomasoquistas, empresários e budistas, hackers e nudistas, nerds e skatistas, cristãos, judeus, muçulmanos, ateus, punks e umbandistas, me sentirei enfim representado por uma bancada: a bancada dos humoristas -um conjunto de homens e mulheres sérios, empenhados em derrubar o verniz de seriedade que nos impede de enxergar o ridículo de todas as coisas deste mundo.

    Enquanto o sol não vem -o cumulus nimbus da mesquinharia parece bem fixo sobre nós- dou aqui minha imodesta sugestão para os excelentíssimos comediantes: um projeto de lei tornando obrigatória, em todo o território nacional, a tecla SAP do humor.

    Em qualquer filme de cinema ou programa de televisão, de pronunciamento oficial a novela das oito, de Godard a comercial de margarina, dos documentários sobre as saúvas africanas aos grampos dos caciques do PMDB, em se apertando a tecla SAP do humor teríamos a versão paródia do que estivesse sendo exibido. (Para pessoas com problemas auditivos haveria legenda ou um mímico fazendo umas patacoadas num quadradinho, embaixo da tela).

    Aparece o Temer, você aperta a tecla SAP e ouve a Tatá Werneck falando uns absurdos. William Bonner daria notícias delirantes sobre, digamos, uma chuva de cupcakes em Quixeramobim -com a voz do Pato Donald. Donald Trump só falaria espanhol, com sotaque árabe -sobre sexo. Debates entre políticos seriam dublados ao vivo pelo pessoal do extinto "Rockgol", da MTV. Marcelo Adnet recriaria os textos de todas as novelas bíblicas.

    Gregório Duvivier seria o encarregado pela IURD. Pedro Cardoso faria a voz nos filmes do Bruce Willis. Bruno Mazzeo narraria todos os jogos de futebol e todos os jogos de futebol seriam do Vasco e o Vasco ganharia tudo, da série C de Santa Catarina a Champions League. (Se já houvesse a tecla SAP do humor na semifinal da Copa de 2014, Vasco x Alemanha teria terminado 7 x 1 pro Vasco -o Vasco seria o time de camisa branca, claro, a Alemanha aqueles perdidões de amarelo).

    Se você quisesse, poderia passar o dia com a tecla SAP do humor apertada: seria como assistir à realidade a contrapelo, ao mundo bizarro no desenho do Superman, ao lado de lá em "Alice Através do Espelho", seria o Porta dos Fundos entrando pela porta da frente nos lares e Cinemarks da nação.

    Haveria apenas duas exceções em que a tecla SAP do humor não funcionaria: no horário eleitoral e em votações do Congresso. Ver a bancada da bala defender a vida, o Partido da Mulher Brasileira criticar o feminismo e religiosos usarem o nome de Cristo para reduzir a maioridade penal já é patético o suficiente. (Pensando bem, o 7 x 1 tampouco precisaria ser dublado. Melhor seria assisti-lo sem falas, em preto e branco, com uma pianinho animado ao fundo, como uma boa comédia do Chaplin ou do Buster Keaton.)

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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