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    Antonio Prata

    Lá vou eu em meu eu oval

    17/07/2016 02h00

    Semana passada, parado em meio a centenas de motoristas, tomando parte nesta sinfonia da cretinice humana chamada engarrafamento, me dei conta de uma mudança pequena, porém sintomática, na epiderme dos automóveis (ou autoimóveis?): quase já não há adesivos.

    Alguns anos atrás, praticamente todo mundo usava o carro para mandar uma mensagem ao mundo. A bandeira da Jamaica informava aos demais cidadãos que ali dentro daquele Fusca havia um cara que curtia reggae, provavelmente fumava maconha e entre passar as férias em Berlim ou Itacaré, preferiria Itacaré. O "Je parle", da Aliança Francesa, informava que ali dentro daquele Uno havia uma garota que curtia Godard, provavelmente usava boina e entre um piquenique no parque e uma ida ao Playcenter, ficaria com o piquenique. "OPTei" informava a todos que o motorista da Variant era petista. "Deus é fiel" informava a todos que o motorista da Brasília era cristão –embora, por anos, eu tenha pensado que a ideia fosse mostrar que Deus torcia pro Corinthians. Semana passada, porém, olhei em volta e encontrei um único carro com adesivo, "Di Cunto soluções em logística" –provavelmente, dirigido pelo próprio senhor "Di Cunto". O que terá acontecido?

    Minha hipótese –se me permitem uma rápida sociologia de botequim– é que os adesivos foram engolidos pelas redes sociais. Antes, estávamos soltos na multidão. Era preciso afirmar nossas individualidades no meio da geral. Como não sabíamos quem ao nosso redor era católico, maconheiro, cinéfilo, petista ou tucano, o alvo do nosso marketing pessoal era a cidade inteira, o carro era nosso outdoor particular. Com Facebook, Twitter, Instagram, Tinder e quetais, a gente comunica o que a gente é (ou pensa que é, ou finge que é) para os que a gente escolheu. Que se dane o cara do carro ao lado, da frente ou de trás. Meu nicho, espalhado pelo globo, se concentra na tela do meu celular. (Será coincidência que um dos últimos adesivos a entrar na moda tenha sido a familiazinha papai-mamãe-filhinho-filhinha-cachorro, como se disséssemos adeus ao espaço público antes de nos refugiarmos no silêncio dos insulfims?).

    Nos meus dias mais otimistas acho que essa compartimentação é positiva. Trinta anos atrás, se um cara era o único gay ou o único heavy metal ou o único vegetariano de um vilarejo de quinhentos habitantes ele se achava um freak. Hoje, com uns cliques, ele encontra seus pares –no vilarejo ao lado ou do lado de lá do Atlântico.

    Nos meus dias mais pessimistas, no entanto, fico me questionando qual será o preço de nos comunicarmos cada vez mais apenas com os nossos semelhantes. Não será essa uma nova forma de vilarejo? O vilarejo dos iguais? Será que essa mesma segmentação que me faz prescindir da opinião do carro ao lado não cria um mundo mais intolerante, mais raivoso, menos aberto à diversidade?

    "Lá vou eu em meu eu oval", palíndromo da Marina Wisnik, me veio à memória ali no engarrafamento. Uma frase circular que veste como uma luva –ou como uma uva?– o nosso universo umbigo, casulo dentro do qual perco qualquer identificação com os de fora. Na melhor das hipóteses, o outro deve ser ignorado. Na pior, deve ser "trollado", linchado ou atropelado por um caminhão.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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