A pessoa dedica a vida toda a nadar mais rápido, a saltar mais alto, a prensar as costas do oponente contra um tatame antes que o oponente prense as dela. Então, nos minutos ou segundos que a pessoa tem pra fazer valer o esforço de décadas, diante de bilhões de pessoas, ao vivo, em cores, às vezes quase pelada, a pessoa tropeça. Escorrega. Cai de bunda.
Como se não bastasse o maior revés profissional, talvez o maior baque existencial pelo qual já passou, logo depois, ainda arfante, ela encara as câmeras do mundo todo: "E aí? Perdeu o equilíbrio, a medalha escapou, que aconteceu?", "Oitavo lugar, tempo pior que o do Pan, como você explica?", "Muitos erros, não deu pódio, sua última Olimpíada, e agora?".
Fico imaginando se nossos fracassos também fossem transmitidos ao vivo, pra metade do globo. "Estamos aqui com o Alberto Boucinhas, Alberto que tava encarando uma dieta Atkins, categoria acima de 150 quilos, e aí, Alberto? Vinha aí num ritmo bom, quatro semanas, tinha perdido quase dez, a Neide confiante, mas duas da manhã e você acaba de traçar um pote de napolitano com Nutella. Que que foi? Estresse? Muita pressão da Neide?"
"Uma palavrinha, Gláucia?! A Gláucia tá saindo da Fuvest, tá fazendo cursinho há três anos pra medicina, tava gabaritando os simulados, mas na hora do vamos ver errou até raiz quadrada de 4. E aí, Gláucia? Exausta, família decepcionada, três anos jogados fora, que que você sente numa hora dessa?"
"Henrique! Henrique! Um minutinho, por favor! O Henrique acaba de lançar seu primeiro romance, todo o mundo com muita expectativa, o Henrique largou a advocacia pra se dedicar à literatura, vendeu a casa, dez anos aí escrevendo essa história sobre um homem num quarto conversando com um criado-mudo que talvez só exista dentro da cabeça dele e... E as críticas não foram boas, né, Henrique? As vendas também não foram boas, parece que o seu projeto de vida não deu certo, né, Henrique? E agora? Vai tentar cavar uma Bienal do Livro? Uma Flip? Ou vai voltar pra advocacia?"
"Rafael! Que que aconteceu, rapaz? Entrou confiante na festa, começou pontuando na pista de dança, foi pra cozinha, chegou preciso na Juliana, beijou a Juliana na área de serviço, foi pra casa da Juliana, ela te aplicou um yukô no colchão, você levou pro waza-ari no carpete, mas na hora de finalizar.... A Juliana ainda tentou cooperar, mostrou entrosamento, bom trabalho manual, mas não teve jeito. Que que houve? Um apagão?"
"Arlindo, vem cá: 40 anos, duas falências, três casamentos frustrados, sem filhos, sem amigos, nome no Serasa, triglicérides lá em cima, careca, agora taí, bêbado, sentado na sarjeta, esperando a polícia pra fazer o bafômetro depois da batida. Parece que nessa vida não deu, né, Arlindo?".
Arlindo solta um suspiro. Acende um cigarro. "Realmente. Eu tentei, aí, me esforcei bastante, mas fazer o quê? Tem uns que dão certo, outros não. Graças a Deus eu sou espírita, tá? Acredito em reencarnação, então é bola pra frente, é trabalhar aí pra tar limpando esse carma e torcer pra na próxima as coisas serem melhores!" "Taí com vocês o Arlindo, um dos últimos no ranking geral da existência, dando esse recado cheio de esperança pro Brasil!"
É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
Escreve aos domingos.