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    Antonio Prata

    Os adultos andam mais fantasiados que crianças de Peppa Pig

    25/09/2016 02h00

    Adams Carvalho/Editoria de Arte/Folhapress

    Na escola da minha filha, toda quarta é dia da fantasia. Vou levá-la até a sala e quase sou atropelado por um Homem-Aranha em fuga, perseguido por uma Frozen e uma bailarina. No tanque de areia, um urso panda briga com uma Peppa Pig por causa de um baldinho. Encostado numa pilastra, com ar superior, um Superman afirma, categórico: "Odalisca não existe, tá?". A odalisca chora.

    Deixo minha filha (Pequena Sereia) na classe e, atravessando aquele carnaval, me volta a eterna constatação de quem convive com crianças: como adulto é chato, como com o passar do tempo vamos abaixando o volume, equalizando graves e agudos, deixando que por timidez, covardia ou, pior, por preguiça, o olhar fosforescente dos primeiros anos se transforme nesse mingau bege da maturidade.

    Na mesma noite, porém, vou ao shopping Frei Caneca assistir a um filme, entro na fila e, ainda contaminado pela visão daquele pátio, percebo que eu estava redondamente enganado: os adultos também estão fantasiados, muito mais fantasiados –e não só às quartas-feiras.

    Primeiro, vejo o magrelo de boina, óculos de aro fininho e suspensórios. Veio vestido de cinéfilo, é claro. Não de qualquer cinéfilo, mas de amante do cinema francês (boina) dos anos 60 (aro fininho) puxando um pouco para o neorrealismo italiano (suspensórios).

    Atrás do cinéfilo, um lutador de jiu-jítsu com orelha de couve-flor, bermuda, chinelo Rider, camiseta com um urso e os dizeres "Team Guigo" está vestido não para entrar no cinema, mas no octógono do UFC. Imagino que, passada a catraca, vá pedir uma pipoca com açaí e uma Sprite com proteinado de soja.

    A namorada do lutador usa uma saia tão curta, mas tão curta, que consegue driblar as leis da física: a barra parece estar acima da cintura. O top mal contém os enormes peitos de silicone e o perfume, se espraiando pela fila, não deixa dúvidas sobre qual fantasia ela veste (ou despe?): fantasia sexual.

    Mais à frente um garoto de camiseta Lacoste, bermuda jeans, cinto de couro trançado e mocassins sem meia está fantasiado de "trabalho-no-mercado-financeiro-e-vou-ganhar-meu-primeiro-milhão-antes-que-vocês-terminem-suas-pipocas". A mulher, de cabelo loiro até a bunda, dentes brancos e perfeitos, toda trabalhada na power-ioga, parece dizer "mozinho-serei-sua-esposa-fiel-e-cuidarei-da-casa-e-dos-filhos-enquanto-você-garantir-as-viagens-na-primeira-classe".

    O casal é olhado com desprezo pelas moças de cabelo curto, regata e calça militar: "rejeito-a-feminilidade-padrão-ninguém-nasce-mulher-torna-se-mulher-e-vocês-erraram-de-shopping-aqui-é-Frei-Caneca-porra!".

    Observando a tudo, um sujeito de calça jeans, Hering preta, velhos Nikes de corrida e barba por fazer talvez pretenda emplacar um: "sou-desencanado-estou-acima-dos-ditames-da-moda-roupa-pra-mim-é-conforto", mas os óculos de tartaruga o denunciam: "sou-artista-barra-intelectual-minha-falta-de-apuro-é-muito-bem-apurada-como-um-traço-de-distinção-um-troféu-tipo-não-vou-ficar-rico-como-o-da-Lacoste-nem-dar-porrada-com-o-da-couve-flor-mas-pelo-menos-posso-andar-mulambento-por-aí".

    Perto de tamanho apuro cenográfico, a saia de sereia da minha filha e a máscara de Peppa da amiga parecem coisa de criança.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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