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    Antonio Prata

    Um enorme passado pela frente

    12/03/2017 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress
    Ilustração Antonio Prata de 12.mar.2017

    Quando, em meados da segunda década do século 21, os mamíferos bípedes mais conhecidos como homo sapiens (ou ainda mais conhecidos como Claudisney, Marilu, Mohammed, Juanito da Catimbira, Xin Sun Lun, Earl Dwight, Um Dois Três de Oliveira e Quatro e por aí vai, dependendo da origem, das predileções e delírios de cada progenitor), enfim, como eu ia dizendo, quando, em meados da segunda década do século 21, os seres humanos assistiram à eleição de Donald Trump à presidência dos EUA, à disputa de nove times de futebol pelo passe do detento Bruno e ao presidente (sic) da República (sic), Michel Temer ("sick"), no Dia Internacional das Mulheres, apontando as compras de supermercado e os cuidados com o lar como a grande contribuição feminina à sociedade, muitos pensaram: cazzo, estamos voltando no tempo?

    Cazzo, estávamos. Por conta de um revertério cósmico já intuído por físicos desde o início do século 20 (Lamaître, Penzias, Wilson, Dicke, Gamow et al.), após 13 bilhões e 700 milhões de anos se expandindo, o Universo perdeu o impulso que vinha lá do Big Bang e, como uma bexiga esquecida atrás da piscina de bolinhas num bufê infantil -mas que tivesse em si a própria bexiga, a piscina de bolinhas e o bufê infantil-, começou a encolher.

    O que os físicos não sabiam é que, ao murchar, nesta melancólica andropausa astronômica, o balão arrastaria, além do espaço, o tempo, que passaria a correr para trás. O retrocesso foi rápido. Grafites coloridos em São Paulo voltaram a ser muros cinza. A bicicleta foi desestimulada em favor dos velhos carros, que recobraram, a 90 km/h, o direito de matar livremente nas marginais. O Obamacare foi cancelado por Trump. Pelas ruas dos EUA, membros da Ku Klux Klan puderam ser vistos levando seus lençóis pra passear. A economia brasileira retornou aos números de 2010. Os russos se tornaram ameaçadores outra vez. O fisiologismo mais chão da nossa política e economia, que por 20 anos se disfarçou (mal e porcamente) detrás de tímidas reformas sociais, escancarou seus caninos de Conde Draga e, para "estancar a sangria", os meteu na nossa jugular.

    No começo, a volta ao passado foi difícil: tivemos que atravessar de novo a dívida externa e os Menudos, o Plano Funaro e o Ilariê, sem falar do fascismo, do nazismo, da peste negra e do inconveniente de topar, numa segunda-feira à tarde, com o exército de Gengis Khan. Não foi fácil, também, nos desapegarmos das conquistas da civilização, tais como o cortador de unha, a poltrona vibratória com porta-copo, o Polenguinho de bolso. Mas depois de muito sofrermos, tendo ultrapassado Torquemada e Tutancâmon, tendo reconstruído pirâmides e cruzado o mar Vermelho, eis que chegamos à origem dos séculos e retomamos a terra prometida. Nesse Éden terreno não havia emprego nem Facebook, buzina ou despertador, éramos todos caçadores coletores andando nus pelas florestas, tomando banho de cachoeira, comendo cajus, amêndoas e javalis. Claro que de vez em quando um de nós era jantado por um leão, mas ser jantado por um leão é um preço justo a ser pago pela liberdade, além de ser uma morte épica, muito mais bela do que ter as artérias entupidas pela gordura saturada do Polenguinho, após anos sentado numa poltrona vibratória, cortando as unhas dos pés. Regozijai-vos, irmãos: como dizia Millôr Fernandes, temos "um enorme passado pela frente".

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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