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    Antonio Prata

    Hoje não tem polvo

    11/06/2017 02h00

    Hoje pensei num polvo, sei lá por que -e alguém lá sabe por que pensa o que pensa? Polvo, pólvora, pombo, pampa, prímula, Príapo, pontífices, Paranapiacaba- pronto, paremos nos pensamentos principiados em P para não penitenciarmos profundamente os prezados patrícios.

    Enfim, pensei num polvo e me perguntei: será que o polvo tem, como eu, dias bons, dias ruins? Sei que o polvo não tem um cérebro igual ao nosso, desconhece a linguagem, mas alguma luzinha de consciência deve haver. Polvo tem olhos, tem medo e quando sente medo solta na água um jato de tinta pra confundir o predador, como uma bomba de fumaça num velho filme de ninjas.

    Será que um polvo que passa a tarde inteira tentando pegar uns peixes suculentos e termina, lá pelas seis e meia, comendo só um sirizinho cascudo, volta pra toca frustrado? Será que ele pensa -ou sente, de alguma forma- "poxa, hoje deu tudo errado"-, depois dorme encolhido, enrolado em seus tentáculos?

    Pensei no polvo e fiquei contente: já tenho tema pra crônica. Mas aí eu pensei: cara, diante do que está acontecendo no Brasil, falar de pensamento de polvo? Enquanto escrevo, o TSE vota se cassa ou não a chapa Dilma-Temer.

    Passei a semana assistindo a pessoas muito cultas e muito bem pagas (por nós) debaterem se é necessário punir um crime diante de provas irrefutáveis ou se é melhor lançar um jato de tinta sobre a lei para "manter a estabilidade". Sugestão de slogan para nosso país: "Brasil, há 517 anos mantendo a estabilidade!". O slogan vale mesmo se -improvável- cassarem a chapa, pois logo arranjaremos outro criminoso para manter a estabilidade.

    Por esses dias, na Paraíba, cinco adolescentes infratores foram queimados vivos sob a tutela do Estado. Repito. Queimados. Vivos. Houve comoção nacional -pelas vítimas inglesas do terrorismo islâmico. No Twitter, um cidadão cuja alcunha é "A favor da lei" me mandou parar de tratar bandidos como coitadinhos. Depois, acho que se arrependeu e disse ser contra queimar vivo, deveriam é ser enforcados em praça pública.

    Toda semana eu tento escrever sobre assuntos como esse do polvo. Assuntos que parecem bobagem, mas quando vamos ver de perto, não são. Sugestão de slogan a ser pintado na fachada da sede do inexistente Sindicato dos Cronistas: "Não existe bobagem debaixo do sol". Veja, nosso DNA é muito parecido com o DNA do polvo. E da samambaia. E do quiabo. DNA, RNA, proteínas, enzimas: toda vida sai da mesma caixinha de Lego. Richard Dawkins e Stephen Jay Gould são cientistas que estudaram essas coisas e escreveram livros explicando-as de forma clara e bela para leigos como eu. O polvo não leu porque é polvo. Os sete adolescentes assassinados (cinco foram queimados vivos, dois mortos a cacetadas) provavelmente nunca leram porque foram a escolas ruins e eram pobres na periferia na Paraíba, na periferia do Brasil,
    na periferia do mundo.

    Dos duzentos milhões de brasileiros: quantos tiveram ou terão a oportunidade de encarar o milagre da dupla hélice, Pitágoras, Platão, Drummond? Bem poucos. Essa é a nossa estabilidade. Quinhentos e dezessete anos levando milhões do berço ao túmulo sem lhes dar a mínima chance de olhar em volta e refletir minimamente sobre o que estamos fazendo por aqui -o que é, convenhamos, o mínimo que deveríamos poder fazer por aqui. E o polvo? Esquece. Hoje não tem polvo.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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