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    Antonio Prata

    Em 60% do tempo fico ocupado com pensamentos inúteis e aleatórios

    25/06/2017 02h00

    Editoria de Arte/Folhapress
    Adams Carvalho

    Em 40% do tempo minha cabeça me deixa trabalhar, conversar, ler livros, fazer essas coisas todas que a gente faz com a cabeça da gente. Em 60% do tempo, no entanto, eu estou ocupado com pensamentos inúteis e aleatórios que penetram a consciência com a mesma cerimônia do Kramer invadindo o apartamento do Jerry a cada episódio de "Seinfeld".

    Por exemplo: estou aqui a escrever e uma voz interna, vinda dos cânions mais profundos do esquecimento, cantarola um slogan ouvido numa propaganda em 1987: "É na Fábrica de Móveis Brasil, tá?". Velhos slogans, aliás, compõem boa parte desses spams mentais. Sou capaz de subir a Teodoro Sampaio inteira, à pé, repetindo "Existem mil maneiras de preparar Neston: invente a sua!".

    Eis aqui, com exclusividade, 15 segundos do meu riquíssimo monólogo interior entre a Cônego e a Francisco Leitão: "Preciso pagar o condomínio. 'Existem mil maneiras de preparar Neston: invente a sua!'. Posso pagar pelo celular, enquanto espero na fila do correio. 'Existem mil maneiras de preparar Neston: invente a sua!'. Boa, adoro ler o código de barras com o celular. 'É na Fábrica de Móveis Brasil, tá?'".

    Pior que os slogans são as melodias. Sou refém da abertura de "Mad Men" desde 2008. Posso atravessar um almoço, da salada ao cafezinho, cantarolando internamente "Tanam, tanam, tanam, tanam, tanam, tanam, tanam, tanam naaaaaaaaaaaaam, prrrrllllllllllllll, pá tsi tsi tsi papa tumtum papa tumtum pa plish!". (Do "pá tsi tsi" em diante, caso você não tenha percebido, é a bateria).

    Ah, bateria... Toquei por alguns anos na adolescência e, de milhares de horas de estudo, o que me sobrou foi um groove batucando nos miolos: "Tum tsi tá, tsica, tsica, tum tá/ Tum tsi tá, tsica, tsica, tum tá" e a virada "Taratarataratara" (é a caixa) "Tunutunutunutunu" (tom-tom 1) "Tonotonotonotono" (tom-tom 2) "Purumpurumpurum" (o surdo) "Plish!" (o prato). Ainda se fosse uma virada elaborada, mas é a mais básica, que se aprende já na segunda aula. Às vezes estou numa reunião, no cinema, no mictório e parece que estou concentradíssimo no filme, no PowerPoint, na bituca a girar no fundo do urinol, mas estou é "Taratarataratara tunutunutunutunu tonotonotonotono purumpurumpurumpurum plish!".

    Há momentos em que até me aventuro por viradas mais criativas, como a da abertura do "Mad Men" "pá tsi tsi tsi papa tuntum papa tun" –mas antes de chegar no meio percebo que já perdi a contagem, que vou voltar no contratempo e ferrar com a banda. Que banda, Zé Mané? Não tem banda nenhuma. Você tá na cama. Fazendo sexo. Bem, estava.

    Um filósofo do século 17 propôs que a mente era uma tábula rasa sobre a qual o conhecimento ia sendo inscrito. Se eu fosse um filósofo do século 17, em vez da teoria da tábula rasa proporia a teoria da bala Juquinha. A mente é uma grande bala Juquinha sobre a qual caspas de informação grudam aleatoriamente para nunca mais sair.

    Como no século 17 ninguém saberia o que é uma bala Juquinha, meus estudos passariam despercebidos, eu morreria no anonimato, pobre, mendigando –e repetindo internamente versos de um bobo da corte ouvidos muito tempo antes, na infância, quando a minha mente ainda era uma bala Juquinha tão pura e rósea quanto o meu glabro bumbum. Eis aí uma bela imagem pra fechar a crônica. Era assim que eu a fecharia, se pudesse, mas não posso. É mais forte do que eu: "Taratarataratara tunutunutunutunu tonotonotonotono purumpurumpurumpurum plish!".

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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