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    Antonio Prata

    Na faixa

    09/07/2017 02h00

    Adams carvalho/Editoria de Arte/Folhapress

    Em Nova York, parado no corredor de um supermercado, de olhos semicerrados, apertando os fundilhos de um melão na esperança algo metafísica de intuir seu grau de amadurecimento, comecei a compreender um dos reflexos mais profundos e prosaicos da democracia americana: a divisão equânime do solo. (E não me refiro à reforma agrária, feita por Lincoln, em 1862, com o "Homestead Act").

    Ouvi um "excuse me" pouco alvissareiro, olhei para trás, dei com o sorriso ferino de uma mulher e me dei conta de que estava impedindo a sua passagem. Fui pro canto e segui com as compras, pensando: "Que mala". Aos poucos, porém, a insistência nos "excuse mes" me fez prestar atenção na posição do carrinho e na minha, toda vez que parava para ver um produto. Comecei a desconfiar que, talvez, o mala fosse eu.

    Há, nos EUA, um rígido protocolo não escrito para o uso do espaço público. É assim no supermercado, nas escadas rolantes, nas calçadas, nos restaurantes. É assim até com os carrinhos de bebê. Num vagão de metrô, por exemplo, você não para bem em frente à porta, num clima de "estou portando duas crianças sagradas que pairam acima de todas as regras da civilidade: contornem os pequenos budas, pobres mortais!". Cada um sabe onde e como se colocar para otimizar o fluxo geral. Todos se beneficiam desta CET mental.

    De volta ao Brasil, ainda dentro do avião, me lembrei da diferença. Ninguém te deixa sair da poltrona. É preciso saltar no corredor como quem toma um bonde andando. No aeroporto, os carrinhos atolados de malas e compras do free shop fecham-se uns aos outros como SUVs enfurecidos na hora do rush. Ninguém dá passagem, ninguém respeita idoso, cadeira de roda, criança. Quem pode, pode, quem não pode, se sacode.

    Faixa de pedestres, entre nós, é um conceito inexistente. Ando por aí com uma criança de quatro anos e uma de dois num carrinho duplo e, mesmo assim, os carros não param. Às vezes, indo pegar meus filhos na escola, vou enfiando o carrinho vazio na faixa enquanto os carros se aproximam, achando que a possibilidade de matar crianças (os motoristas não sabem que está vazio) os comoverá. Nada.

    Eles buzinam e aumentam a velocidade, me fazendo recuar. Não é falta de estudo. Estou falando de gente rica, num bairro rico.

    Farejo o comentário on-line: "Filas nos hospitais, educação pífia, mortandade nas periferias, corrupção generalizada e você reclamando que tá difícil atravessar a rua?!". É tudo a mesma coisa, amigo. Há, por trás daquelas regras não escritas do deslocamento a pé, a acepção geral de que todos são iguais numa cidade e, logo, perante a lei. A divisão igualitária do espaço público é uma consequência prática da tal "Religião Civil" que Rousseau afirmou ser necessária para que o pacto social vingasse: a crença na ideia de que se cada um abrir mão de um pouco da sua liberdade em nome de um bem maior, todos saímos ganhando.

    No Brasil, porém, somos incapazes de firmar um pacto mínimo, de compreender que estamos todos juntos. Fala-se muito em "esgarçamento do tecido social", mas para esgarçar tem que haver, antes, algum tecido. Não tem. O que temos, há 517 anos, é meia dúzia agarrada aos novelos e a patuleia matando e morrendo por uns fiozinhos. Aqui, "na faixa" lembra mais uísque na área VIP do que travessia de pedestres.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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