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    Antonio Prata

    Gugu-dadaismo

    13/08/2017 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress
    Ilustração Antonio Prata de 13.ago.2017

    Ser pai de crianças pequenas implica uma relação compulsória com o surrealismo. É como se, de uma hora pra outra (apesar da gravidez durar quase dez meses e levar uns dois anos pros filhos falarem, é de uma hora pra outra que você se descobre pai de dois seres humanos, como, aliás, acontece com tudo na vida, ontem mesmo eu estava na 4ª A, batendo as figurinhas da Copa União, agora estou checando on-line minha previdência privada, mas isso é tema pra outra crônica, abrir parênteses é sempre um risco, essas paredes aconchegantes nos fazem esquecer do mundo lá fora, assunto, aliás, para uma terceira crônica, enfim, voltemos ao início, não é porque vá falar sobre a infância e o surrealismo que precise escrever um texto cubista, pois bem, como eu ia dizendo, é como se, de uma hora pra outra) você passasse a conviver com um pequeno Dalí e uma mini Buñuela.

    Não me refiro às grandes questões metafísicas, tipo "Todo mundo tem que morrer?" ou "Onde os bebês ficam antes da barriga da mamãe?" (essas são as questões dos pequenos Sócrates e Darwins), mas a diálogos mais prosaicos que transformam qualquer ida ao posto de gasolina numa cena de "O Anjo Exterminador".

    Paramos no posto. Meu filho de dois e minha filha de quatro anos vão atrás, nas cadeirinhas. Ele pergunta: "A gente vai pôr gasolina no carro?". "Vai". "Muita gasolina?". "Muita!", digo, empolgado, sabendo que "muito" é uma das suas palavras favoritas, "Muito biscoito", "Muito filminho", "Muito suco no copo da Frozen", me pede, sempre, mas agora começa a chorar: "Muita gasolina não! Muita gasolina não!". "Por que não?". "Muita gasolina vai cair! Vai cair muita gasolina do carro!". "Não vai cair, filhote, tem tampa no carro, que nem no copo da Frozen", "Não! Não quero muita gasolina! Não quero muita gasolina!".

    "Encho?", pergunta o frentista. Eu, sem perceber que meu cérebro está operando no modo "Irmãos Marx", respondo bem baixo, esperando que meu filho não ouça, "Enche", mas ele ouve, "Não! Enchido é muito! Não quero muito (sic) gasolina!". Repreendo-o, sério: "Olha aqui, a gente precisa chegar até a casa da vovó, a gente vai botar muita gasolina, sim!". Ele grita: "Pouca gasolina!". Eu, dedo em riste: "Muita gasolina!". Minha filha decide tomar uma posição na contenda e entra no choro: "Papai, ele não quer muita gasolina! Põe pouca gasolina!".

    A caminho da casa da avó o silêncio é pétreo. Ele queria pouca gasolina. Eu pus muita. Ambos sabemos que o traí. Alguns minutos mais tarde, minha filha resolve sair da trincheira. "Papai, o que é a bolinha da água de bolinha?". "É ar, filhota". "Não é não, papai. O ar a gente não vê e as bolinhas a gente vê". Depois do raciocínio mais complexo de que já fui capaz, respondo: "Acho que o que a gente vê não é o ar das bolinhas, mas a água em torno do ar". Fico orgulhoso da minha resposta. Há nela qualquer coisa de zen budismo. Minha filha, contudo, parece encarar os mistérios da existência de modo mais cartesiano e retoma o choro: "Não, papai! Não tô falando da água! Tô falando da bolinha! Do que que é feita a bolinha?!". Encorajado, meu filho se junta a ela: "Eu não queria muita gasolina!", "Não é de ar a bolinha!", "Eu odeio muita gasolina!", "Não dá pra ver o ar!", gritam, indiferentes ao pai, que, como se fosse a coisa mais normal do mundo, sobe a Rebouças cantando "I sipi ni livi i pi/ Ni livi pirqui ni qui/ Ili miri li ni liguii/ Ni livi i pi pirqui ni qui/ Mis qui chili!".

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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