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    Antonio Prata

    Crônica corrupta

    10/09/2017 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress
    Ilustração Antonio Prata de 9.set.2017

    Se contecesse com s crônic s o que contece com s úde públic br sileir, este texto começ ri ssim, b nguel. "O que t rol ndo?", pergunt ri o leitor, perdido. "T rol ndo é que hoje é di de envi r crônic, m s cabou letr " " no estoque. Ou o governo n o rep ssou s verb s necess ri s, ou s verb s for m desvi d s pelos gestores, f to é que n o tem letr " " e tenho que m nd r crônic de qu lquer jeito. "Por que neo use o "E" no luguer do " "?", sugere o leitor, "É ume voguel perecide". "Boe! Temos que improviser, essim como um médico improvise ume sonde de urine ne luguer de ume sonde nesoguéstrique, ume secole pléstico de supermerquede em vez de frelde geriétrique, tem que ministrer pre todes es infecções o único entibiótico que tem nes preteleires. Tregédie.

    Pronto, parei, vamos dizer que chegou mais "A" no estoque, sigamos em frente, agora temos todas, todas as vogais, mas algo, algo ainda parece errado, estranho, nesta crônica corrupta, algo, sei lá, parece um tanto, diria, truncado, repetitivo, cadenciado, sim, é verdade, é o excesso de vírgulas, 20 até agora, "É pra imitar o Saramago?", não, não é, é que além de cronista eu sou dono de uma fábrica de vírgulas, sim, eu que as fabrico e a Folha me paga não só pela crônica, como também pelas vírgulas da minha fábrica, então eu encho de vírgulas, melhor, eu superfaturo as vírgulas, cobro dez vezes o preço por cada uma, é como esses golpes que a gente vê por aí a toda hora, o sujeito é diretor da Organização Social que gere um hospital público, aí o sujeito, não, não tô dizendo que toda Organização Social é corrupta, as Organizações Sociais honestas e eficientes gerindo hospitais públicos são uma benção, mas muitas, infelizmente, não são nem uma coisa nem outra, enfim (já foram 41 vírgulas neste parágrafo! Tô, vamos dizer, tipo, rico!), enfim o sujeito faz o SUS comprar insumos produzidos por ele próprio, em licitações fraudadas, enchendo malas com o dinheiro que deveria salvar criança doente, não dá pra acreditar, eu com as minhas vírgulas pelo menos não mato ninguém, só de tédio, talvez, mas tédio nunca foi crime na literatura, muito pelo contrário, vide o Nobel pro Saramago.

    Sim, di-lo-ei quantas vezes for necessário: o Saramago é chato pra burro. Por que Saramago, agora, perguntar-me-ás tu, numa crônica sobre corrupção na saúde? A questão não é o Saramago, meu amigo, é a mesóclise. Há médicos que ganham das empresas fabricantes de próteses, eu ganho de uma empresa fabricante de mesóclises. (O Temer também). Esses médicos inserem válvulas e joelhos desnecessários nos pacientes, eu insiro mesóclises desnecessárias nos textos. Não me importa se uma mera ênclise ou próclise daria conta do recado, enfadar-lhes-ei, mas entupir-me-ei de dinheiro. Censurar-me-ás, talvez, mas é assim que o Brasil funciona, esta é a ética do mercado, eu só furto, Deus é quem matá-los-Á.

    Como acaba esta crônica corrupta? Abruptamente, como a luz caindo num hospital cuja rede elétrica está há anos sem reparo, como a parada cardiorrespiratória do motoqueiro de 19 anos que espera por um leito estirado no corredor, como a boa vontade da enfermeira que não recebe há três meses, como a vergonha na cara dos filhos da piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmm, apita o monitor cardíaco, linha reta na tela, fim.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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