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    Antonio Prata

    Janela

    22/10/2017 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress

    Abro a janela do escritório a caminho do computador, o sol bate no meu rosto e me detenho ali, de pé, por um instante. São nove horas da manhã, é um sol bom, certamente aprovado pela Sociedade Brasileira de Dermatologia, o céu está azul e uma brisa adia o calor que já começa a dar as caras neste final de outubro. Na laje do prédio em frente, recostado no para-raios, um porteiro de calça marrom e camisa bege fuma seu cigarro, o olhar perdido sobre o vale do Pacaembu. Lá longe, catorze andares abaixo, um amolador de facas anuncia sua chegada, parecendo vir diretamente de 1983: trrruiiiiiiillllll, trrruiiiiiiillllll, trrruiiiiiiillllll.

    O mundo está se acabando, mas por um instante estou dentro de uma crônica do Rubem Braga.

    Lá longe, catorze andares abaixo, o presidente do Brasil acaba de flexibilizar as leis contra o trabalho escravo, em nome da estabilidade –e não é essa a nossa estabilidade? Nos Estados Unidos um defensor dos combustíveis fósseis, colocado na agência que deveria combater os combustíveis fósseis, promove a queima de carvão. A "New Yorker" publica o perfil de um dos organizadores da manifestação de Charlottesville,

    um supremacista branco cuja razão de viver é provar que os negros são intelectualmente inferiores e que tratá-los como iguais é uma estratégia dos banqueiros judeus para disseminar a desordem e reinar sobre a terra. Essas notícias deveriam soar absurdas, mas o que parece irreal, agora, é o sol batendo no meu rosto, a brisa, o céu azul, o porteiro descansando,
    o silvo do amolador de facas.

    Sei o momento exato em que tudo começou a desandar: foi aos 23 minutos do primeiro tempo de Brasil x Alemanha, na Copa de 2014, com o gol de Kroos, um minuto após o gol de Klose, aos 22. Aos 25 Kroos fez de novo, e aos 28, Khedira; não muito depois a economia brasileira ruiu –a Nova Matriz Econômica, sabemos agora, era tão sólida quanto a "Família Scolari"–, Bolsonaro, defendendo a tortura, passou a ser uma figura política relevante, os criminosos investigados pela Lava Jato tomaram o poder para acabar com a Lava Jato, Trump venceu as eleições nos EUA, o tráfico retomou o controle do Rio de Janeiro, o MPL, movimento que levou milhares às ruas pelo transporte público, abriu as portas para o MBL, movimento que levou milhões às ruas e ajudou a eleger em primeiro turno o aumento da velocidade nas marginais. É como se aqueles quatro gols em seis minutos tivessem criado um buraco negro, um bueiro cósmico, um ralo no espaço-tempo que, desde então, vem engolindo qualquer possibilidade de bom senso.

    Se eu tivesse nascido na Somália ou na Maré talvez não estivesse surpreso, para a maioria esmagadora da população mundial a vida sempre foi um 7 a 1 constante, uma luta para fugir da guerra, encontrar água, alimentar os filhos, mas eu nasci em São Paulo, numa família de classe média, cresci num curto período em que as coisas pareciam estar melhorando. Foi uma exceção? Ou exceção é o que estamos vivendo agora? A história tem alguma lógica ou é mesmo essa patacoada cheia de som e fúria, sem sentido algum, contada por um idiota?

    O porteiro termina seu cigarro e some por um alçapão, já não ouço o amolador de facas, mas o sol continua, e eu sigo na janela por mais uns minutos, seis, que sejam, me agarrando à brisa bragueana.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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