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    Antonio Prata

    Tiozice

    19/11/2017 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress
    Ilustração Antonio Prata de 19.nov.2017

    Finalmente, em meio a tantas desgraças, tragédias, percalços, tropeços e retrocessos neste ano pífio de 2017 –foi tão ruim que deveríamos rebatizá-lo como 2017 x 1–, uma boa notícia para a humanidade: nasceu Laura, a minha sobrinha. Veio ao mundo às 18h26 do dia 6 de novembro, com 52,5 cm, 3.955 g e trouxe consigo, em duas semanas de vida, dias ininterruptos de sol, céu azul e o heptacampeonato brasileiro para o Corinthians –até o Jadson, quem diria, voltou a jogar bem. Eu sabia que ficaria emocionado ao pegar minha sobrinha no colo, mas não suspeitava ver brotar em mim esta faceta que havia estado secretamente mocozada, por quatro décadas, nas profundezas do meu DNA: a tiozice.

    Ser pai muda radicalmente a nossa vida. Descobrimos ser possível passar dois anos sem dormir, alimentando-se somente de frango (Galinha Pintadinha) e porco (Peppa Pig), nos damos conta de que somos capazes de tecer comentários sobre a perfeição cilíndrica de um cocozinho (numa entrevista de emprego) e nos flagramos tranquilos a caminho da padaria vestindo moletom, tênis de corrida, meias brancas e a camisa furada do Guns'n'Roses que desde 1994 só era usada como pijama. A paternidade, ao te algemar às demandas de uma criança, te liberta das amarras da sociedade. A tiozice não te algema a nada e ainda atira as cordas ao chão.

    Foi pegar a Laura no colo para sentir o formigamento na alma, a coceira na epiderme da psique: era o tio dormente saindo do ovo e fazendo, aos 40 anos, com 169 cm e 74.000 g, sua entrada no mundo. Mal quebrei a casca e pude me ver, num almoço de domingo, exercendo em toda a plenitude a glória do meu novo status familiar: "É pavê ou pacomê?!", digo e rio sozinho, como só os tios podem fazer.

    Tios são, por definição, sem noção. (Eu ia escrever que a rima é involuntária, mas talvez já sejam os instintos infames da tiozice digitando por mim). Moletom, camisa furada, meia branca e Mizuno surrado me soam como um desprendimento de menino: agora almejo Riders, camisa regata e sunga –bege, como convém. Penso em largar a Finasterida, deixar um cavanhaque e verei se é possível, com alguma loção, fazer crescerem pelos nas costas. (Vai ficar incrível com a regata, na fila da padaria).

    Nasce o tio, crisma-se o cunhado; é o bar-mitzvá do fanfarrão. Até hoje exerci a cunhadagem com parcimônia, sempre avisando antes de visitar a minha irmã e pedindo licença para pegar uma cerveja na geladeira. Nas últimas semanas, contudo, tenho chegado sem aviso, domino o controle remoto, como os restos do almoço direto do Tupperware e pontifico, de boca cheia, "Deviam dar de mamar com hora marcada, esse negócio de livre demanda é bagunça. Escuta, só tem Brahma?"

    O melhor de tudo, percebo agora, é que o processo evolutivo iniciado na paternidade não termina na tiozice. A natureza é sábia: as duas experiências são apenas a preparação para nosso grande papel na ciranda genética: o de avô. Já posso me ver na padaria, de Crocs e suspensórios, deixando os netinhos, empanturrados de milk-shake, experimentarem com o dedo a espuma do meu chope. "Não conta para sua mãe, hein? É segredo nosso."
    Obrigado, Laura. Obrigado, Maria e Pedro –e desculpa qualquer coisa.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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