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    Antonio Prata

    VHS, DVD, pet shop

    26/11/2017 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress

    Todo sábado eu e a minha mulher repetimos nosso programa favorito: fazemos pipoca, nos metemos debaixo de um cobertor e passamos a noite diante do Netflix. Com o dia já amanhecendo, ainda em dúvida se deveríamos ter visto o "Chef's Table" do cozinheiro iemenita, o especial de stand-up em que um comediante transgênero narra sua adolescência na comunidade hip-hop de um bairro hassídico do Alabama ou, pela décima sexta vez, "Annie Hall", vamos dormir. Não lembro do último filme ou série a que assistimos, só lembro das noites intermináveis pulando de capinha em capinha até o sol iluminar nossas olheiras.

    "Capinha" denuncia a minha idade. Quem é criança ou adolescente talvez não associe as imagens dos filmes no Netflix às capas dos DVDs. Pois eu sou do tempo do DVD. Minto, sou do tempo do VHS. Minto, sou do tempo pré-VHS, do tempo do pingue-pongue, do pega-pega, do esconde-esconde -um tempo em que havia pouquíssimas diversões eletrônicas mas, como se vê, sobravam brincadeiras com hífen.

    Lembro de quando surgiram os videocassetes e com eles aquela instituição brilhante e fugaz que iluminou minha adolescência nas últimas décadas do século 20: a videolocadora. Toda sexta, oito e pouco, lá estava eu, na 2001 da Sumaré, me perdendo pelas alamedas de Kubricks, Woody Allens e Hitchcocks.

    Os funcionários, cinéfilos inveterados, com o aspecto vigoroso de todos os que se dedicam à cultura -pálidos, corcundas, ao mesmo tempo magros e, misteriosamente, barrigudos-, mal me deixavam terminar a frase "Sabe qual o filme do Woody Allen que ele se declara embaixo da Brooklyn bridge" -e já saíam apressados- "I lurve you, I lowve you!", 'Annie Hall'! Corredor quatro! Vem comigo!".

    Eu não era melhor de escolhas, naquele tempo. Também demorava séculos para me decidir, mas havia algum constrangimento em passar três horas numa videolocadora. Em algum momento antes da meia-noite, quando os funcionários já me olhavam desconfiados de que eu estivesse sem coragem de pegar um pornô da salinha privê, eu fechava numa meia dúzia de filmes e ia para casa.

    Frequentava-se uma locadora como quem frequenta um clube. Me senti traindo a 2001, portanto, quando mudei pra Higienópolis e me envolvi com HM. Ali trabalhava o Sérgio, um cara que conhecia filmes tão obscuros de certos cineastas que nem os certos cineastas sabiam que tinham feito. Depois o Sérgio se mudou pra Notorious, na Cardoso de Almeida. Mudei-me com ele.

    Vi as três locadoras morrerem uma morte lenta, primeiro esfaqueadas pela TV a cabo, depois metralhadas pelos vídeos on-demand. Hoje a 2001 é uma academia de cross-fit, a HM é um pet shop e a Notorious, um restaurante japonês. Não cairei no saudosismo besta de afirmar que ir de carro até a Sumaré para escolher meia dúzia de filmes é melhor do que eleger entre 30 mil, sentado no meu sofá.

    O Netflix é uma grande invenção. Ao menos para os que sabem usá-lo. Minha mulher não sabe. Quer ver séries novas, filmes independentes, conhecer comediantes trans e cozinheiros iemenitas: pra que, Deus do céu, se podemos assistir, pela décima sexta vez, a "Annie Hall"? Ela fecha a cara. Eu digo "I lurve you! I lowve you! I loffe you!". Ela não acha a menor graça e o sol nasce lá fora.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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