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    Antonio Prata

    Soneto da perdida esperança

    03/12/2017 02h00

    É domingo. Eu e a minha irmã trazemos os pratos da cozinha. No quarto, o marido dela nina a bebê. Meus filhos brincam com a avó, no tapete. Minha mulher e meu padrasto bebem vinho à mesa, não sei o que conversam, mas o fim de frase que me chega parece correto para o almoço dominical: "...e no verão dava mais manga". Deixamos os pratos no aparador e voltamos à cozinha para buscar o rosbife. Antes que a porta basculante se feche às minhas costas, a risada das crianças me incute a suspeita: talvez isso seja a felicidade.

    Estranho. Não estou me sentindo feliz. Estou me sentindo normal. Na verdade, até um pouco aflito, em breve o ano acaba e neste rabicho de dezembro ainda tenho muito trabalho a concluir. Amanhã abrirei os olhos e darei com o muque da segunda-feira, pronta para o braço de ferro semanal: "Você não pode comigo!", "posso!", "não pode!", "posso!", "não pode!". A risada dos meus filhos, porém, afasta a segunda por um momento, afasta o próprio domingo, é como se eu contemplasse de um futuro distante a cena familiar, uma foto que já me chega melada de nostalgia.

    Era domingo. Como de costume, eu e a minha irmã púnhamos a mesa. O marido dela, no quarto, ninava a bebê. Meus dois filhos pequenos –o mais novo nem tinha abandonado as fraldas– brincavam com a minha mãe, no tapete azul. Minha mãe ainda era viva. Meu padrasto ainda era vivo. Todo mundo era vivo, àquela época, o cheiro do rosbife chegava da cozinha e, se não me falha a memória, naquele dia teve manga de sobremesa.

    Adams Carvalho/Folhapress

    Tiro o rosbife do forno e a estranheza vira incômodo. Agora não é mais uma visão do passado, é uma experiência extracorpórea, assisto à cena como se fosse outra pessoa.

    É domingo. Como todo fim de semana, quando almoçam na casa da mãe, ele e a irmã põem a mesa. A filha dela, cujo parto ele acompanhou, semanas antes, é ninada no quarto, pelo pai. Os filhos dele brincam com a avó no tapete da sala. (Os filhos ainda dependem dele pra tudo, a mãe não depende dele pra nada e ele nem suspeita o quão abençoada é essa equação). A mulher, a quem ama e por quem é amado, conversa com o padrasto dele. O padrasto abre um vinho. Do forno chega o cheiro do rosbife, comprado por ele, com o salário dele. (Amor, vinho, rosbife, salário, tudo isso para ele é default).

    Ele traz o rosbife pra mesa, encara a família reunida, sua filha gargalha e desta vez ele sente raiva. O que mais ele quer? Ganhar na loteria? Jogar na seleção? Eleger-se presidente? Dos Estados Unidos? Ele leu "A Morte de Ivan Ilich". Ele assistiu ao diálogo de Hamlet com a caveira de Yorik. Viu "A Origem do Mundo", do Courbet e ouviu "Canto do Povo de um Lugar", do Caetano Veloso. Ele sabe que a vida não é mais do que isso, mesmo quando ela é mais do que isso, não é mais do que isso, sabe que isso é frágil, um segundo num cruzamento, meio milímetro numa artéria e.

    Ele tem quarenta anos. Na melhor das hipóteses, se nem um segundo nem meio milímetro se intrometerem antes, ele está na metade do caminho, está no auge, dali em diante é um longo percurso ladeira abaixo, até o dia em que, quatro décadas mais tarde, com sorte, irá se lembrar nostálgico daquele domingo: o cunhado chega do quarto, anuncia que a bebê dormiu, todos batem palmas e comem o rosbife.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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