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    Antonio Prata

    Um conto de Natal

    24/12/2017 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress

    Começa com um post no Facebook. Digamos, um político do PT sendo escrachado por ela no aeroporto. O post viraliza. Em alguns dias, alguns milhões de visualizações.

    Ela é bonita. Ela é jovem. Ela é morena. Não tão morena que possa ser considerada negra por um racista, nem tão branca que não possa entrar por cota numa universidade. Mas ela não entrou por cota, ela "quis entrar pelo próprio mérito", é o que descobrimos na estreia do canal aberto por ela no YouTube depois do sucesso do post no Facebook.

    Ela faz a estreia no canal com um cachorrinho no colo. Ela chama o cachorrinho de "meu bebê". "Meu bebê" veste uma touca vermelha de Papai Noel e uma camisetinha com a bandeira do Brasil. De novo, milhões de visualizações. No segundo vídeo, postado na noite do 24, ela aparece com algumas amigas –todas bonitas, saradas e com cabelos lisos e longos– distribuindo ceias de Natal para cachorros abandonados pelas ruas de São Paulo. Quando um jornal descobre e publica a notícia de que ela participou do ataque a um laboratório em São Roque, em 2013, no qual ativistas contra testes com animais libertaram cem beagles, vem o convite para que ela se candidate a presidente.

    Ninguém sabe o que ela pensa sobre economia, saúde, segurança, mas odiar o PT e amar os beagles é o suficiente para que, na primeira pesquisa que inclui seu nome, ela apareça em quarto. Em sua conta no Instagram ela posta, a cada dia, uma foto do "seu bebê" com uma roupinha contendo uma frase diferente. "Eu 'au'credito no Brasil!". "Vai, L'au'va Jato!". "Ordem, progresso e Royal Canin!". O nome do bebê, digamos, é "Moro".

    É impensável que ela ganhe. É uma bolha, ela vai sumir, vai tropeçar sozinha, todos pensam. Quando, contudo, ela posta no Facebook uma montagem de um hamster comendo um minitemaki e recebe 55 milhões de likes, um cientista político sublinha, apreensivo, que é mais like do que o número de votos que qualquer presidente eleito já recebeu no Brasil. Surge um boato de que Fernando Henrique estaria negociando uma frente suprapartidária para enfrentá-la, mas todos os nomes envolvidos nos boatos negam veementemente.

    Aos poucos, pelas redes, ela vai dando seus pitacos. É descendente de negros e entrou na faculdade sem cota, então é contra as cotas. É mulher e sempre soube se dar o respeito, tem muita mulher aí que não se dá, depois vem com "mimimi" feminista. Já teve mais de 20 cachorros e nunca viu um cachorro gay, então esse negócio de gay não é natural. Ela mantém o equilíbrio fazendo meditação e não comendo carne. Seus ídolos são Kéfera, Whindersson Nunes e Jesus, "porque os três se fizeram sozinhos. É claro que Jesus, hoje, seria youtuber".

    Ela passa para o segundo turno contra o Lula. O país fica dividido entre o sapo barbudo e o hamster do temaki. Lula viaja pelo país, fantasiado de Lula, repetindo que "ninguém-jamais-tanto-ou-menos-ou-mais-qualquer-coisa-do-que-ele". Ela posta uma coreografia com as amigas dançando o hino nacional em versão K-pop. Há dúvidas sobre se ela irá ou não ao debate da Globo. Quando ela é chamada por William Bonner, o "bebê Moro" entra no palco vestindo uma camisa com o desenho da mão com quatro dedos sob o símbolo de proibido. É o vídeo mais assistido na história da internet brasileira.

    Ela vence.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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