• Colunistas

    Saturday, 27-Apr-2024 18:35:00 -03
    Bernardo Carvalho

    Jogando para a plateia

    17/04/2016 02h00

    Por que, agora, quando quero saber de um fato, leio uma coluna de opinião? Será simplesmente porque os jornais estão cheios delas? Ou porque a internet e as redes sociais nos viciaram nisso? (Não participo de redes sociais.) Ou será porque os fatos nunca estiveram tão descaradamente editorializados? Ou porque a coluna de opinião é pelo menos uma referência subjetiva identificável (sei quem está falando e por quê) em meio à falsa objetividade da guerra de propaganda em que se converteu a mídia?

    O que atravanca a leitura do supostamente objetivo é o não dito. Ninguém gosta de ser enganado. E embora até a letra da lei esteja sujeita a opinião e interpretação, ainda há fatos incontestáveis. Não espanta que a um ministro do STF só reste exclamar "Meu Deus!", sem saber que está sendo gravado, ao constatar a alternativa de governo que o impeachment oferece ao país.

    Por maior que seja o autoengano, o pensamento positivo, a hipocrisia ou a má-fé, uma suposta medida anticorrupção capitaneada por gente acusada e investigada por corrupção, além de não ter nenhuma legitimidade, não começa bem e tende a terminar pior ainda. Seria piada pronta, se não fosse uma tragédia anunciada. A situação absolutamente risível e improvável da política brasileira já foi tema até de programa humorístico de TV nos Estados Unidos, país que reconhece a sua parte de absurdo na política.

    Alguém dirá que, na falta de objetividade, posso pelo menos contar com os números incontestáveis das pesquisas de opinião. Claro. Leio que 7 entre 10 leitores da Folha são a favor do impeachment e que o jornal vem batendo recordes de leitura. Mas por que, em meio a uma crise de saúde pública na qual o direito ao aborto legal em casos específicos deveria voltar à pauta, a Folha dá como manchete absoluta, no alto da primeira página, que 51% da população é contra o aborto em qualquer circunstância? A informação é de fato relevante, mas será simplesmente objetiva? Por que publicá-la nesse momento e não antes? Por que agora, justamente quando a mídia não perde nenhuma oportunidade para tentar desvincular o vírus zika da microcefalia, com o argumento de evitar um pânico desnecessário, criado pela suposta incompetência do governo?

    É uma justificativa objetiva para enterrar de vez o direito ao aborto em casos de má-formação do feto? Quem acusa e se escandaliza com a suposta pressa ou incompetência do governo em associar o zika ao aumento de casos de microcefalia jamais terá um filho ou um neto com microcefalia como consequência do vírus zika. E isso não apenas por esse risco não passar de 1% entre as grávidas infectadas na Polinésia.

    A lógica parece estranha? Também acho. O que importa é que, se há pânico, ele não foi criado pela associação entre o vírus zika e casos de microcefalia, mas pelo fato de se viver em um país onde não se tem o direito de interromper legalmente a gravidez no caso de má-formação do feto. Se 51% da população fosse contra a distribuição de medicamentos gratuitos (contra a Aids, por exemplo, por motivos morais, religiosos etc.), para ficarmos no âmbito da saúde pública, seria justificativa para abolir a distribuição desses medicamentos?

    Em um mundo medido por "likes", qual é a parte da coragem e da convicção impopular? Qual é a parte dos princípios éticos de um agente social ou de um formador de opinião? O que seria da ciência se só dissesse o que as pessoas querem ouvir? O que seria da literatura se só se escrevesse o que os leitores querem ler? O que seria das artes e da ciência sem a coragem de desafiar o consenso? E o jornalismo? É o exercício da demagogia?

    Não acredito que leitores e espectadores sejam simples massa de manobra. Diante da desfaçatez da manipulação, é difícil acreditar que haja uma burrice correspondente da população. Ninguém está sendo enganado sem querer. Se por um lado só se escreve o que o leitor quer ler, por outro, o leitor também só acredita no que quer e só engole (e compra) aquilo em que acredita.

    O país assiste, nos últimos meses e com mais estrondos nas últimas semanas, a uma guerra política entre campos que opõem menos a corrupção à lisura do que, como já foi dito por colunistas deste jornal, interesses de gangues. O PT já era odiado muito antes de se tornar corrupto, o que não justifica a corrupção, é claro, mas transforma em retórica boa parte do discurso de apoio oportunista à oposição corrupta. Manipulados ou não, o fato é que cada um aproveita o barulho para ouvir o que quer.

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024