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    Bernardo Carvalho

    Ingenuidade

    12/06/2016 02h00

    É ingênuo pensar que toda brasileira, nem que seja apenas por ser mulher, devesse se revoltar e se sentir representada pela adolescente estuprada por um grupo de homens no Rio de Janeiro. É ingênuo pensar que bastaria se unirem na luta por seus direitos para que as brasileiras, que representam mais da metade do país, pudessem eleger afinal um governo que as representasse. É ingênuo pensar que toda brasileira devesse lutar por seus direitos, em vez de deixar as decisões sobre sua vida, seu corpo e sua saúde a cargo de quem melhor entende do assunto, como pastores e políticos comprometidos com interesses de igrejas.

    É ingênuo achar que um governo cujo líder na Câmara é, não por acaso, um dos autores (ao lado de Eduardo Cunha) do projeto de lei que dificulta o acesso ao aborto a mulheres vítimas de estupro tenha algo contra as mulheres. É ingênuo achar que elas não estejam em boas mãos.

    É ingênuo relacionar fatos tão díspares quanto o líder do governo na Câmara ser autor de um projeto de lei dessa ordem, um delegado pôr em dúvida a existência de crime no caso da adolescente estuprada por um grupo de homens (aproveitando para constranger a vítima sobre a veracidade de sua denúncia) e o país ser recordista absoluto em estupros (declarados, um a cada 11 minutos em 2014). Que é que essas coisas têm a ver umas com as outras se não a simples coincidência de terem ocorrido no mesmo país?

    É ingênuo supor que, a julgar pelo comportamento desse delegado, haja algum risco de não produzir os efeitos desejados uma lei que exija o exame de corpo delito da vítima como condição para que ela tenha direito ao aborto.

    É ingênuo acreditar em tudo o que dizem os jornais estrangeiros.

    É ingênuo imaginar que, por ser gay, um gay devesse pensar duas vezes antes de aplaudir um governo abençoado, a portas fechadas, por Silas Malafaia e Marco Feliciano. É ingênuo imaginar que, por ser gay, todo brasileiro gay já devesse ter entendido que o governo Temer (e o que ele anuncia) não só não o representa mas representa uma séria ameaça aos seus direitos e ao seu futuro.

    É ingênuo pensar que as gravações reveladas no último mês pudessem derrubar o governo. É ingênuo pensar que essas gravações, nas quais o então ministro do Planejamento e o presidente do Senado revelam que o impeachment era o que lhes restava para salvar a pele da sanha da Justiça, tenham alguma consequência, relevância ou significado.

    É ingênuo pensar que o presidente interino nomearia ministros investigados e envolvidos em ações comprometedoras se achasse que havia algum risco de isso comprometer seu governo. É ingênuo considerar tropeço ou desvio de percurso a ideia de pôr um pastor no Ministério da Ciência ou uma mulher que já disse ser contra o aborto até em casos de estupro, além de ser suspeita de articulação criminosa, na Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. É ingênuo achar que o presidente em exercício não saiba o que faz.

    É ingênuo desconfiar de um governo só porque seus ministros dizem uma coisa um dia e o oposto no dia seguinte, para abafar o escândalo provocado pelo que realmente pensam.

    É ingênuo imaginar que haja algo errado ou contraditório entre impor um arrocho econômico à população mais pobre, deixando a saúde e a educação à míngua sob o pretexto de salvar o país da falência, e aprovar um aumento para os salários do Judiciário, do Executivo e do Legislativo, com custo bilionário para os cofres públicos.

    É ingênuo temer que, por causa da irresponsabilidade de uma elite deseducada e suicida, disposta a tudo para não pagar nem mais um centavo de imposto, uma elite à qual o atual governo veio prestar contas, o Brasil não saia de crise nenhuma, mas só afunde numa crise ainda maior, pelo desbaratamento de pilares estruturais como a saúde e a educação públicas. É ingênuo achar que saúde e educação públicas são a condição de possibilidade da solvência do país a longo prazo. É ingênuo dizer que a elite brasileira pensa curto.

    É ingênuo pensar que um ministro da Educação que recebe conselhos de Alexandre Frota e de um integrante do grupo Revoltados On-Line não tenha excelentes planos para o futuro da educação no país.

    É ingênuo temer pelas mulheres, pelos mais pobres, pelos gays, pelos ateus, pelos direitos individuais, pela ciência, pelas artes, pela inteligência e pelo bom senso. É ingênuo temer o pior. É ingênuo achar que não estejamos no caminho certo. É preciso ser muito ingênuo para ainda não ter entendido que esse é um governo de salvação nacional.

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

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