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    Bernardo Carvalho

    O combate insistente pela literatura de um editor português

    04/09/2016 02h00

    Em outubro de 1990, caminhando por Lisboa num domingo de manhã, deparei com uma vitrine que exibia exemplares de uma única peça de Thomas Bernhard ("Minetti", se não me engano) com o destaque que em geral é reservado às preciosidades num museu ou numa joalheria. Não havia nada além de uns poucos exemplares da peça de Bernhard.

    A disposição dos livros não deixava margem para dúvida: era uma declaração de princípios. O efeito sobre o turista solitário, que ainda por cima vivia o êxtase de ter descoberto o escritor austríaco poucos anos antes, foi decisivo. Que cidade era aquela onde uma livraria (eu supunha que fosse uma livraria) se dava ao luxo de exibir exclusivamente exemplares de uma peça de teatro de Bernhard?

    Àquela altura, numa manhã de domingo, a loja estava fechada. Voltei no dia seguinte. O pequeno prédio, numa ladeira entre o Chiado e o Bairro Alto, sediava a editora independente Cotovia, cujos livros eram vendidos no térreo. O efeito da véspera se confirmou quando entrei e me dei conta do rigor de um catálogo extraordinário e do projeto gráfico das edições.

    A beleza das capas ressaltava uma ideia de conjunto. Seguiam sempre o mesmo desenho, divididas em duas cores cuja variedade dava ao lugar uma alegria elegante. Graças à descoberta fortuita da Cotovia, numa manhã melancólica de domingo, guardei de Portugal a imagem de um país onde a literatura sobreviveria mesmo quando já não houvesse lugar para ela em nenhuma outra parte, mesmo quando a vulgaridade, o mercantilismo e o oportunismo tivessem contaminado ou silenciado as coisas das quais eu mais gosto. Se havia um lugar assim, onde a literatura era tratada como exercício de liberdade, coragem, inteligência e resistência, então ela não morreria nunca. Era uma imagem de sonho.

    Quando, alguns anos depois, o editor André Fernandes Jorge, idealizador e fundador da Cotovia, me escreveu para dizer que queria publicar um dos meus livros, quase explodi de felicidade. Só pensava que, em algum momento, quem sabe, um turista solitário, subindo uma ladeira entre o Chiado e o Bairro Alto num domingo triste, poderia ver o meu pequeno romance naquela mesma vitrine onde antes estivera exposta a peça de Thomas Bernhard.

    Meses mais tarde, durante a feira de Frankfurt, uma grande editora portuguesa me procurou, interessada nos direitos do romance que eu acabava de publicar no Brasil e que era posterior ao que a Cotovia já havia adquirido, mas ainda não lançara. Em parte por vaidade, mas também por respeito e gratidão ao crítico Eduardo Prado Coelho, a quem devo muito e que havia feito a indicação àquela editora, eu não soube recusar a proposta. Ainda sem me dar conta do tamanho da traição, eu apunhalava pelas costas um homem que lutava pelos mesmos ideais aos quais eu queria consagrar a minha vida.

    A vergonha veio ao ler a carta que recebi do André, cerca de um mês depois. Eu tinha lhe dado motivos de sobra para se sentir traído, ainda mais por permitir que, sem me conhecer pessoalmente, ele, que adorava o Brasil e estava disposto a lutar pela literatura brasileira com a mesma paixão militante com que defendia os títulos mais radicais de seu catálogo, acabasse me associando, a contragosto, ao clichê do malandro brasileiro. Era uma carta digna e revoltada. Já não lembro o que respondi para desfazer o mal-entendido. Ficamos amigos.

    O André morreu faz quase três semanas e eu não perdi só um amigo e um irmão. Perdi um companheiro de armas que também era um militante da amizade.

    Num dos últimos e-mails que me escreveu, ele perguntou: "Onde foi que eu errei?", e me exortou a agarrar a felicidade. O André pôs tudo o que tinha no projeto da Cotovia. Era um projeto bonito, no qual também participou sua mulher Fernanda Mira Barros. Mas como nem mesmo Portugal é o país de sonho que eu havia imaginado ao deparar com aquela vitrine numa ladeira entre o Chiado e o Bairro Alto, o André foi atingido pela crise, quando lutava contra um câncer, e no fim da vida já tinha perdido quase tudo.

    Eu queria ter lhe dito que ele não errou em nada (não mais que todo mundo). Ele sabia melhor que eu. Continuou a lutar sozinho. Acertou a própria cremação. Na hora de escolher o caixão, queria o mais simples e o mais barato, mas o mais barato estranhamente não era o mais simples, tinha uma cruz. O André não transigiu com o proselitismo nem na hora da morte: "Não tem problema, levo o mais barato e peço para alguém lá da editora arrancar a cruz".

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

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