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    Bernardo Carvalho

    A opinião dos leitores e a crítica

    30/10/2016 02h00

    Reprodução
    Cena do vídeo publicitário da Bienal
    Cena do vídeo publicitário da Bienal

    Um filme publicitário atualmente exibido nos cinemas mostra um ator interpretando um boçal no pavilhão da Bienal de São Paulo.

    O almofadinha, vestindo pulôver escuro com gola rolê, cita o "existencialismo sartriano numa pegada mais Sófocles", a "ironia do 'Memórias Póstumas'", Nietzsche e Méliès, entre outros, para compor um discurso afetado e vazio na tentativa de definir uma suposta obra de arte. É o velho clichê do crítico e intelectual, sucesso garantido em tempos de obscurantismo orgulhoso e exaltado. O filme parte da campanha publicitária promovida pela Bienal, com o lema "Difícil colocar em palavras. Melhor ver".

    Vi a propaganda da Bienal no mesmo dia em que a Câmara Brasileira do Livro e a Amazon anunciaram uma nova categoria do prêmio Jabuti: a dos melhores romances, contos, crônicas e poesia, na opinião dos leitores. Pode não parecer, mas uma coisa tem a ver com a outra.

    O prêmio da Escolha do Leitor foi anunciado em tom de inovação democrática. O mesmo argumento tem sustentado algumas das estratégias de mercado mais draconianas de grandes corporações de internet, como Google e Amazon. Afinal, dá-se voz ao leitor, que agora pode pôr em xeque as decisões arbitrárias, elitistas e muitas vezes incompreensíveis de um punhado de críticos e intelectuais que não representam a opinião da maioria.

    Nesse sentido, a Escolha do Leitor menos inova do que aperfeiçoa uma tendência que já coroava as edições anteriores do prêmio: o Livro do Ano. Escolhido pelos livreiros, ele contempla com maior remuneração os títulos com mais chances de corresponder às expectativas do mercado, muitas vezes contrariando os resultados das categorias literárias do Jabuti. Também é verdade que existem prêmios do público em festivais de cinema, mas costumam ter um peso secundário, além de representar a opinião de um espectador especial, frequentador de festivais.

    A principal ressalva à inovação democrática do Jabuti, entretanto, é que já existe um prêmio do leitor. Ele se chama lista dos mais vendidos e é outorgado semanalmente no mundo inteiro. É claro que há diferenças. A favor da nova categoria, deve-se dizer que os leitores elegerão seus títulos apenas entre os finalistas já selecionados. Ou seja, pela via do meio, o novo prêmio atenderia ao mercado sem exonerar a crítica.

    Mas, então, por que os prêmios literários mais prestigiosos mundo afora continuam ignorando a opinião da maioria (esse "leitor" que, enquanto entidade abstrata, nunca existe como indivíduo desviante, nunca representa a exceção)? A resposta é simples. A despeito de seus eventuais equívocos e injustiças (e não são poucos), os prêmios literários não foram criados para corresponder a critérios objetivos de mercado.

    Os prêmios literários são asserções (com frequência, inerciais; às vezes, justas e corajosas –e a coragem não costuma ser fruto da média ou do consenso) sobre o que um grupo de pessoas, selecionadas por motivos nem sempre claros, objetivos ou acertados, acredita que deve ser defendido em termos de subjetividade e exceção.

    Ao atribuir o prêmio de literatura a Bob Dylan, por exemplo, o Nobel tomou uma decisão idiossincrática, mas que exalta justamente o que há de subjetivo tanto em escrever como em ler e premiar literatura.

    Ao contrário, exceção e subjetividade não fazem parte do vocabulário das grandes corporações de internet, como a Amazon. É o que torna tanto mais curioso que um dos poucos prêmios literários brasileiros de prestígio tenha incorporado a lógica pleonástica dos algoritmos que estruturam a rede (o que mais se lê também é cada vez mais lido) como critério de julgamento. Não é, ao que pode parecer, mais uma perspectiva subjetiva, mas sim uma forma de endossar uma suposta objetividade, a "naturalidade do gosto", e a premissa de que não se deve contrariar o gosto do "leitor" (seja ele quem for, de preferência uma média que represente muitos, o que acaba servindo como parâmetro de um novo academicismo).

    Hoje, mais do que nunca, soa antipático e antidemocrático pôr em dúvida essa ideia generalizada de leitor. Mas fazer o indivíduo acreditar que não precisa se esforçar para entender o que lhe escapa ou o que o contraria (como propõe a propaganda da Bienal) tem menos a ver com o respeito pela formação de um leitor ou um espectador autônomo, reflexivo e inteligente, do que com a sua redução a potencial de lucro e com o estreitamento correlato de seus horizontes intelectuais e subjetivos.

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

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