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    Bernardo Carvalho

    A onda populista que a eleição de Trump coroou

    27/11/2016 02h00

    Reprodução
    O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, em primeiro pronunciamento pela TV após a eleição
    O presidente eleito dos EUA, Donald Trump, em primeiro pronunciamento pela TV após a eleição

    A onda populista que a eleição de Trump veio coroar soou um alarme tardio sobre o que pode estar errado no mundo. Há um monte de coisas erradas, a começar pelas consequências sociais de uma desregulação predatória dos mercados, associada a uma lógica de dois pesos e duas medidas, e a uma cultura de privilégios, da qual Trump é beneficiário.

    Curiosamente, esse estado de alerta também provocou uma reação menos propensa a resistir do que a fazer concessões. É o que se pode chamar de discurso de adequação ou normalização (ou simplesmente demagogia) e que costuma funcionar à base de inversões, silogismos e sofismas.

    Que os eleitores americanos tenham decidido viver no mundo de Trump, celebrando "as forças do nativismo, do autoritarismo, da misoginia e do racismo", como escreveu David Remnick na "New Yorker", basta para lhes dar razão? A culpa é das forças progressistas e dos avanços dos direitos individuais, como pretendem demagogos e provocadores?

    O papel da disseminação viral da mentira noticiosa, reproduzida por algoritmos do Facebook e do Google com eficácia e proporções inéditas durante a campanha, foi tema de editorial do "New York Times" no fim de semana passado.

    Mas se a maioria (é preciso lembrar que, no caso das eleições americanas, essa maioria é relativa: Hillary venceu no voto popular por mais de dois milhões de votos) se submete aos populismos, a despeito da desfaçatez e das imposturas nas quais se baseiam, é por uma forma perversa ou suicida de empatia: para se sentir ouvida e acolhida em seus preconceitos e na esperança de soluções simplistas para problemas complexos e contradições. Pensar não é simples.

    É melhor não duvidar que um milionário como Donald Trump, mesmo coberto de processos, conhecido por práticas ilícitas e truculentas nos negócios e decidido a derrubar o sistema de saúde para todos proposto por seu antecessor, esteja comprometido com o futuro e o bem-estar das vítimas da globalização e do neoliberalismo.

    Uma pesquisa de boca de urna reproduzida por este jornal mostrou que o eleitor de Trump, além de branco, não estava exatamente entre os despossuídos. O presidente eleito teve 50% dos votos de quem ganha entre US$ 50 mil e US$ 100 mil por ano, e 48% de quem ganha mais de US$ 250 mil. Hillary ficou com 53% de quem recebe abaixo de US$ 30 mil, e 51% de quem ganha entre US$ 30 mil e US$ 50 mil anuais. Ou seja, se for para seguir os silogismos da razão populista, só nos resta concluir que são os racistas e os xenófobos (e não os despossuídos) as principais vítimas da globalização.

    Durante a ascensão espetacular de Trump, li perplexo a entrevista de um jovem de 22 anos, relativamente bem-sucedido e com diploma universitário, que explicava à revista "The Atlantic" seu voto no candidato republicano como uma forma de repúdio ao "politicamente correto", aí incluído tudo o que fosse defesa das minorias.

    Há um discurso de segundo grau escondido no ataque aos direitos das minorias como causa das mazelas do mundo. Sou escritor, sempre escrevi o que quis e, apesar de reconhecer os excessos, desvios e absurdos do politicamente correto, nunca me senti cerceado na minha liberdade de criticar os limites das políticas de identidade. Em sua lógica aloprada e reveladora, os novos demagogos poderiam retrucar que é porque não sou racista nem homofóbico. Claro. O fato é que, contra a burrice de boa-fé, embora desgastante, ainda há a possibilidade de contrapor o bom senso. Já contra a má-fé e o cinismo, a argumentação se reduz consideravelmente.

    A vitória de um candidato com discurso veementemente racista numa sociedade na qual a defesa dos direitos individuais é uma das bases da organização democrática torna incoerente o argumento sobre a suposta ameaça do politicamente correto à liberdade de expressão. Antes, confirma a pertinência e a urgência do combate ao racismo, à discriminação e aos preconceitos, por vias e formas mais inteligentes e mais eficazes do que o politicamente correto.

    É improvável que o mesmo sujeito que reivindica o direito à expressão racista e homofóbica veja algum problema em banir o que contradiz as convicções da maioria (religiosa ou o que seja) com a qual ele de alguma forma se identifica. Contrapor as minorias a uma maioria por elas ameaçada é uma falsa questão e uma armadilha.

    A defesa dos direitos das minorias apenas incorpora a diferença como direito de todos. O que está em jogo nos populismos é, ao contrário, a redução da maioria a uma massa uniforme, a impostura da democracia convertida em regime de exclusão.

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

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