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    Bernardo Carvalho

    Aplico ou não a regra de dois pesos e duas medidas?

    25/12/2016 02h00

    Querido Papai Noel, neste ano dedicamos o curso de matemática à regra de dois pesos e duas medidas. Foi um ano especial. Se fosse fácil entender, não teríamos passado o ano inteiro estudando esse princípio que, pelo que entendi, é uma das regras de ouro da natureza, a par de outras que também estudamos, como a fotossíntese, a eletricidade, a lei da gravidade e a lei da oferta e da demanda.

    Explico para depois o senhor não sair por aí dizendo que passei o ano em protestos gazeteiros, ocupando escolas e quebrando o comércio honesto, e que a culpa pelos resultados pífios no relatório Pisa é minha. Fiz meus deveres, só estou tentando entender.

    Até onde entendi, a regra de dois pesos e duas medidas contradiz as nossas crenças mais arraigadas. Por isso ela é tão difícil. É como a teoria da relatividade, da qual ela é uma corruptela de última hora. Dois e dois são quatro? Depende. Depende de um monte de coisas. Do quê, de quem, de onde, de quando. Veja a economia! Temos exemplos concretos de sobra, mas em matemática raciocinamos por especulações abstratas.

    Afinal, quando é que aplico a regra de dois pesos e duas medidas?

    Vamos supor que haja uma forte probabilidade de um mosquito ser a causa de uma crescente onda de má-formação entre recém-nascidos. Vamos supor que, diante da suspeita, o governo decida prevenir a população sobre o risco. Vamos supor que esse governo seja tremendamente impopular e que esteja por um fio, à beira de um impeachment. (Ah, aí está outro caso interessante para a regra de dois pesos e duas medidas; não posso me esquecer de perguntar ao Papai Noel.)

    Vamos supor que, por ter decidido divulgar, em nome da saúde pública, uma suspeita que, embora ainda não esteja cientificamente provada, será confirmada nas semanas seguintes, o governo seja acusado de incompetente, irresponsável, mentiroso, assassino e disseminador do pânico, numa campanha inercial promovida pelos chamados formadores de opinião (jornais, TVs, comentaristas de internet). Agora, imagine que os mesmos formadores de opinião, antes indignados com a falta de provas científicas, defendam que questões de saúde pública, como o direito ao aborto no caso de fetos vítimas de má-formação, sejam submetidas à opinião pública e não decididas com base em dados científicos e princípios humanitários. Aplico ou não aplico?

    Então, vejamos uma questão mais simples. Vamos supor que, para salvar a economia do país, o governo decida fazer uma reforma do sistema previdenciário e deixe de incluir aí os militares responsáveis por mais de 40% do rombo da previdência dos servidores públicos federais. Para não falar dos interesses e privilégios assegurados a uns e outros a despeito da proposta do teto de gastos. Reformas desse porte, capazes de obrigar um cidadão que queira receber sua aposentadoria integral aos 65 anos a trabalhar desde os 16, não deveriam supor um pacto social, no qual todos, a começar pelos que as conceberam e as estão impondo, abrissem mão dos privilégios, como exemplo, igualando-se ao resto da população? Aplico?

    E quando o governo que assumiu com a desculpa de sanar o país da corrupção endêmica se revela, para quem ainda não tinha percebido, essencialmente corrupto? E aí? Aplico? E quando a Suprema Corte passa a seguir princípios opostos e contraditórios para decidir sobre questões da mesma ordem, para não dizer idênticas, conforme a hora e a necessidade? Não aplico?

    E quando a simpatia é mútua? Quando um juiz imbuído da sanha heroica de varrer a corrupção do país cochicha alegremente com um senador que, além de fartamente citado em delações, é potencial candidato a presidente? E agora, Papai Noel? Como é que fica? Aplico ou não aplico?

    Aqui no Brasil a gente acredita num monte de coisas. A gente acredita que quem chama imposto de pato zela pelo futuro do país. A gente acredita que impeachment é contra a corrupção. A gente acredita que tudo o que é progressista é antidemocrático. Mas logo quando a gente está acreditando em tudo, as coisas ficam difíceis de entender. É aí que entram os dois pesos e as duas medidas para nos ajudar a resolver incoerências e contradições.

    Que é que eles esperavam no relatório Pisa? Passamos o ano todo estudando a regra de dois pesos e duas medidas. Resolvemos os problemas mais cabeludos pela regra de dois pesos e duas medidas, sempre com o maior sucesso. Na dúvida, decidi aplicar a mesma regra a todas as questões das provas. E olhe só no que deu! Olhe só a nossa nota no relatório Pisa, Papai Noel!

    Só queria pedir que, em 2017, eu não precise fazer tanto esforço de compreensão para passar de ano.

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

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