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    Bernardo Carvalho

    Que lugar resta para arte e literatura que apostam na vulnerabilidade?

    19/02/2017 02h10

    É fácil entender que alguém minta para chegar ao poder. E é fácil entender que, por oportunismo, por razões ideológicas, de interesse pessoal ou de classe, outros finjam que acreditam e se submetam à mentira. É gente que, em princípio, só tem a ganhar com o engodo. Bem mais difícil é entender por que alguém haveria de querer ser enganado e acreditar numa mentira que, além de descarada, só lhe causasse dano.

    Calhou de me sentar ao lado de duas mulheres que discutiam as eleições americanas, numa mesa comunitária, durante um recente festival literário na França. Atribuíam a vitória de Trump às desigualdades sociais do neoliberalismo e ao abandono do operariado da América profunda.

    Lá pelas tantas, quiseram saber minha opinião. Lembrei que Hillary Clinton tinha vencido no voto popular, por uma margem de cerca de 3 milhões de votos. E quando acrescentei que havia, além das injustiças da economia neoliberal, uma dimensão de burrice e de masoquismo no voto dado a Trump, as duas viraram a cara e mudaram de assunto, antes de se levantarem e me deixarem só.

    É fácil entender o voto-bomba. Se eu tivesse passado por metade das coisas às quais é submetido o protagonista do filme "Eu, Daniel Blake", de Ken Loach, por exemplo, certamente votaria a favor do "brexit". Não por suicídio, burrice ou masoquismo, mas porque já estaria praticamente morto. E não ia querer ser enterrado sem fazer os responsáveis pagar pelo enterro.

    É bem mais complicado entender o sujeito que, vítima do neoliberalismo e da crise provocada pela especulação financeira, vota na representação máxima do mesmo sistema que o mata.

    Bastou ser eleito para que, sempre em nome dos trabalhadores americanos (dos que ele chamou durante a campanha de "gente deseducada", como elogio, em oposição ao establishment de Wall Street), Trump montasse um ministério de milionários e se pusesse à disposição dos tubarões de Wall Street, anunciando que pretende revogar as medidas que seu antecessor havia adotado para evitar uma nova crise provocada pela voracidade dos bancos.

    A burrice e o masoquismo aos quais me referi talvez sejam apenas resultado da incapacidade real, física, de lidar com as contradições num momento de desespero. Tudo o que é intelectual ou reflexivo passa a ser ferozmente atacado como instrumento de "elites" incapazes de apresentar soluções.

    Hillary foi considerada "má candidata" em parte por representar o mundo das elites educadas, mas sobretudo por ser um poço de contradições. Na premência dos problemas reais, a contradição é insuportável; tem-se urgência de fórmulas mágicas, tanto faz que sejam mentirosas, oportunistas, predadoras ou suicidas. Não dá para pensar nas dificuldades em meio ao caos.

    Brian Eno declarou recentemente ao jornal britânico "The Guardian" que tempos de crise são bons para a reflexão. Seria do interesse do compositor inglês que isso fosse verdade. Seu novo disco se chama "Reflection". Entretanto, uma das principais características dos populismos é a desautorização da inteligência. E da reflexão. E ninguém pensa sozinho.

    A arte que floresce nos populismos, e que lhes é análoga, trata o espectador/leitor/interlocutor como uma criança que não deve ser exposta às suas vulnerabilidades nem confrontada com contradições.

    Não é uma arte problemática ou ambígua. É uma arte de primeiro grau, de soluções fáceis e modelos edificantes, de empatia e de identificação. É uma arte sem trepidações, em zona de conforto, ilustrativa e reiterativa daquilo que já se conhece e em que já se acredita (ou se quer acreditar), e que portanto não comporta risco, dúvida ou desvio, elementos fundamentais para a renovação de qualquer arte.

    Há escolas e mecanismos de mercado para garantir que os requisitos mínimos desse academicismo sejam alcançados e respeitados por consenso. É natural que, diante do caos, o indivíduo precise se agarrar a algum tipo de certeza, a parâmetros sólidos, nem que sejam as normas de um classicismo de representações bem acabadas e bem-sucedidas, de identidades coesas e verossimilhança narrativa, por mais evidente que seja a impostura dessa representação.

    Que lugar resta para uma arte e uma literatura que, ao contrário, apostam na vulnerabilidade como desvio, na crítica e na reflexão? Que lugar pode ter a força do que, por ser desviante, é rejeitado como frágil, imperfeito e inverossímil num mundo sedento por algum tipo de certeza?

    O modelo de realismo psicológico e virtuosismo narrativo (lugar-comum da dramaturgia comercial americana) ao qual vamos nos agarrando também como paradigma literário é o corolário da nossa incapacidade de encarar a contradição e os paradoxos, é nossa boia de salvação num mundo onde perdemos o pé.

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

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