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    Carlos Eduardo Lins da Silva

    O caso do professor de pós sem pós

    31/01/2010 03h00

    Um dos maiores problemas do jornalismo contemporâneo no Brasil é a excessiva dependência dos que o praticam em relação a quem faz declarações. Se a missão do jornalista fosse só transcrever o que ouve, qualquer um que acionasse um mecanismo como o gravador faria o seu trabalho.

    O caso mais sintomático recente é o de uma entrevista publicada com destaque na edição de 9 de setembro passado com alguém apresentado como "professor de pós-graduação da Unicamp", na qual ele aconselhava a cidade de São Paulo a acabar com as marginais porque elas impermeabilizam o solo e agravam as enchentes.

    Um leitor escreveu dias depois ao ombudsman e disse ter feito pesquisa pela internet no sistema Lattes, no qual achou três pessoas com o nome do entrevistado, nenhuma delas com mestrado ou doutorado. Encaminhei o caso à Redação. Em 25 de setembro, foi publicada correção na seção "Erramos": "Diferentemente do que diz a reportagem (...) Roberto Watanabe não é professor da Unicamp. A informação foi fornecida pelo próprio entrevistado".

    Qualquer um pode ser enganado por alguém que mente. Há muitos casos famosos e reais de pessoas que adquiriram prestígio, dinheiro e poder, passando pelo que não eram. Mas o jornalista deve tentar se cercar de garantias sobre a qualificação das pessoas que lhe passam informações, como ensina o livro indicado ao fim deste texto e mostra o filme recomendado.

    O que mais chama atenção na nota de correção é a sua última sentença ("A informação foi fornecida pelo próprio entrevistado") porque muitas vezes ao longo destes 21 meses neste cargo tenho recebido respostas parecidas quando leitores apontam erros, como se o fato de o entrevistado ter proferido uma impropriedade factual isentasse o jornalista de responsabilidade. Se a fonte está emitindo opinião, juízo de valor, sim. Aí, todo o ônus cabe a ela e repórter e editor devem se preocupar basicamente em ser fieis ao que foi dito e tentar garantir isenção no conjunto do material.

    Mas quando se trata de informação, ou o jornalista confia muito na fonte por experiências pregressas ou pela sua notória respeitabilidade ou deve ser o mais crítico que possa nas suas perguntas, confrontar o que ouviu com outros especialistas conhecidos na área, pesquisar a respeito para evitar transmitir algum equívoco bem ou mal intencionado.

    Similarmente, é obrigação jornalística descobrir e revelar ao leitor as vinculações do entrevistado com grupos econômicos ou empresariais, partidos políticos, igrejas ou qualquer entidade ou pessoa cujos interesses tenham a ver com o assunto a respeito do qual ele está falando ao jornal. Esse procedimento é muitas vezes negligenciado. Em repercussões de medidas econômicas ou políticas, por exemplo, é importante para o leitor saber se o especialista ou alguém a quem esteja associado pode estar sendo prejudicado ou beneficiado por elas para ele poder dar o devido peso a suas avaliações.

    PARA LER

    "Jornalismo Diário", de Ana Estela de Sousa Pinto, Publifolha, 2009 (a partir de R$ 35,93)

    PARA VER

    "O Informante", de Michael Mann, com Russel Crowe e Al Pacino, 1999 (a partir de R$ 15,21)

    carlos eduardo lins da silva

    Escreveu até fevereiro de 2010

    Começou a carreira nos jornais "Diário da Noite" e "Diário de S.Paulo". Chegou à Folha em 1984, onde foi repórter, redator, editor, secretário de Redação, diretor-adjunto de Redação, correspondente em Washington e ombudsman.

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